O espetáculo, que estreia esta terça-feira, dia 30 de setembro, em Lisboa, sob a direção de João Saldanha, promete ser mais do que uma peça de dança-teatro: é um convite a uma escuta profunda da natureza e uma reflexão urgente sobre as relações interespécies, um manifesto poético e político que coloca uma cana-de-açúcar no centro do palco para refletir e envolver os espectadores em suas reflexões sobre colonialismo, crise climática, afetos e ancestralidade.

A escolha de uma cana-de-açúcar como tema e personagem do espetáculo é crucial e, ao meu ver, totalmente acertada. Além das implicações em termos históricos – o açúcar está ligado às grandes navegações de Portugal e à colonização brasileira –, ambientais e sociológicas, não podemos esquecer que, do ponto de vista botânico, a cana-de-açúcar é classificada como uma gramínea, da mesma família do bambu, do trigo, do arroz e do milho.

Ou seja, uma planta de ciclo rápido, de grande porte para uma gramínea, e que se propaga em vastas monoculturas homogêneas. Essa identidade botânica está intrinsecamente ligada à sua história de exploração, que o espetáculo pretende discutir, ao desconstruir visões pré-concebidas e dar voz a um sujeito não-humano. Não é uma árvore ou um arbusto, é uma “simples” gramínea e a peça não fala pela "Nobre Árvore da Floresta", mas por uma planta de colmo, robusta e doce, que foi transformada no símbolo de um sistema econômico baseado na exploração da terra e do trabalho, em sua maioria, até os dias atuais, em condições análogas à escravidão.

 

A premissa de “Solo da cana” é tão direta quanto inovadora: no palco, o corpo de uma mulher assume o lugar de fala de uma cana-de-açúcar, não como um exercício de personificação ou humanização do vegetal, mas sim um reconhecimento da planta como um sujeito ativo, com uma história e uma presença que moldaram – e foram moldadas – por séculos de interação, muitas vezes violenta, com a humanidade. A cana-de-açúcar, símbolo emblemático da monocultura colonial brasileira, ergue-se assim como protagonista de sua própria narrativa.

 

Através de uma linguagem cénica que funde dança, teatro e performance, a montagem cria um espaço simbólico onde ecoam questões prementes sobre racismo ambiental, vínculos coloniais e as formas como este passado doloroso continua a formar expressões contemporâneas de poder e dominação sobre os corpos e os territórios.

 

Com uma trajetória consolidada na dança, Izabel Stewart assina também a dramaturgia do espetáculo. A sua performance é descrita como uma alegoria poderosa, que não pretende dar voz humana à planta, mas antes permitir que a sua existência e a sua história ressoem através de um corpo que dança, fala e interage. “É um convite para a gente se escutar e compostar afetos juntos”, afirma a artista, sugerindo um processo de decomposição e renascimento das relações.

 

O espetáculo convida o público a uma experiência sensível e política. “Solo da Cana” não oferece respostas fáceis, mas planta uma semente de inquietação e de possibilidade – a de um novo pacto de escuta entre humanos, territórios e as demais naturezas que connosco coabitam.

 

Mais do que assistir a um espetáculo, o público em Lisboa será convidado a testemunhar um ato de resistência e de ressignificação. É a cana-de-açúcar, finalmente, a contar a sua versão da história sangrenta do colonialismo.

 

 

 

 

 

 

 

Serviço:

“Solo da cana”

Izabel de Barros Stewart, texto e atuação

João Saldanha, direção

Produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi

Lisboa: 30 de setembro, 3ª. feira, a 3 de outubro de 2025, 6ª. feira

3ª. e 4ª. feira às 19h, 5ª. e 6ª. feira às 21h

Espaço Evoé – Rua das Canastras, 40 – Lisboa

Reservas: solodacanateatro@gmail.com