Embora mantenha sua base nas ideias de Marx, o pós-marxismo reconhece que o contexto contemporâneo exige uma abordagem pluralista e aberta a outras influências intelectuais. E uma das principais características do pós-marxismo é a crítica à centralidade da classe trabalhadora.
Ao contrário do marxismo clássico, que via a classe trabalhadora como sujeito revolucionário central, o pós-marxismo questiona essa centralidade. Argumenta que há outras formas de opressão, de gênero, etnia, raça e sexualidade, por exemplo, que são fundamentais para se entender a luta social.
Nesta leitura, os teóricos pós-marxistas, como Ernesto Laclau, argentino, e Chantal Mouffe, belga, incorporaram elementos do pós-estruturalismo, rejeitando a ideia de estruturas sociais rígidas e deterministas. Enfatizam a importância do discurso e da construção social das identidades políticas.
E assim fazem a rejeição da teleologia histórica. Enquanto o marxismo clássico via a história como um processo que culminará na revolução socialista, o pós-marxismo rejeita essa ideia de um desfecho histórico inevitável, enfatizando a contingência e a imprevisibilidade dos processos políticos e sociais.
Laclau e Mouffe introduziram nas suas análises o conceito de "hegemonia", que pensa a construção de alianças e consensos em torno de diferentes demandas políticas. Para eles, a política é um campo de disputa e de construção de significados, onde várias lutas podem ser articuladas em uma frente comum, sem que haja uma única classe ou grupo dominante.
Em resumo, o pós-marxismo é uma tentativa de manter alguns dos princípios críticos do marxismo, mas adaptando-os a uma visão plural e aberta, que reconhece a complexidade das sociedades contemporâneas e a multiplicidade de formas de opressão e luta social.
Mas como sou um estudioso das religiões em suas relações com a cultura e sociedade, pensar a teologia faz parte do meu labor. A teologia liberal foi o ápice da teologia no século XX. Mas a partir do final do século XX, vimos o surgimento da teologia pós-liberal, uma corrente teológica que surgiu como reação crítica ao liberalismo teológico e sua tentativa de adaptar a fé cristã às demandas da modernidade e da razão secular.
A teologia pós-moderna busca retornar às tradições e narrativas cristãs como fonte primária de identidade e verdade, em vez de moldar a fé para se encaixar nas categorias liberais modernas de universalidade, individualismo e racionalidade.
Os principais proponentes da teologia pós-liberal incluem George Lindbeck e Hans Frei, teólogos associados à chamada "Escola de Yale".
A teologia pós-liberal é também conhecida como uma teologia narrativa, devido ao seu foco no papel das narrativas e práticas comunitárias na formação da identidade religiosa.
A característica central da teologia pós-liberal. é a crítica ao liberalismo teológico. A teologia liberal, que predominou no século XIX e início do século XX, procurava reconciliar a fé cristã com a ciência, a razão e os valores do iluminismo. Isso levou à adaptação da doutrina cristã a uma perspectiva mais universal e racional, frequentemente desconsiderando elementos da tradição que não se alinhavam com a modernidade.
A teologia pós-liberal critica essa abordagem, alegando que ela dilui a singularidade da fé cristã, tornando-a indistinta de outras visões de mundo seculares ou religiosas. Por isso, busca a enfase na narrativa e na comunidade. Ao contrário do liberalismo teológico, que enfatizava a experiência individual ou a razão universal, a teologia pós-liberal vê a fé cristã como moldada principalmente pela narrativa bíblica e pela comunidade de fé.
Para os teólogos pós-liberais, a Bíblia e a tradição cristã fornecem uma gramática própria para a fé, que só pode ser compreendida no contexto da comunidade cristã. A verdade cristã é vivida e aprendida dentro dessa narrativa compartilhada, e não simplesmente racionalizada ou traduzida em termos universais.
Realiza, então, a rejeição da adaptação à modernidade secular. A teologia pós-liberal argumenta que o cristianismo não precisa se conformar às exigências da cultura secular ou liberal moderna. Em vez disso, defende que a igreja deve ser fiel à sua própria tradição e narrativa, mantendo uma identidade distinta e contracultural. A igreja, então, é vista como uma comunidade que forma seus membros dentro de uma narrativa específica, com suas próprias práticas e virtudes.
A religião é então um sistema cultural. George Lindbeck, em seu livro A Natureza da Doutrina (1984), desenvolveu a ideia de que a religião deve ser vista como um sistema cultural e linguístico, semelhante a uma linguagem.
Para ele, a doutrina religiosa funciona como uma gramática que orienta o comportamento e a crença dos fiéis dentro de uma comunidade, em vez de ser uma mera proposição cognitiva ou uma expressão de experiências internas individuais.
E a teologia é narrativa. Outro aspecto importante da teologia pós-liberal é a ênfase no caráter narrativo da fé cristã. Hans Frei, em especial, argumenta que a Bíblia deve ser lida como uma narrativa contínua e coerente, e não como um conjunto de proposições doutrinárias ou como um espelho de experiências humanas universais. A história bíblica é considerada um relato singular que molda a vida dos crentes, e é através dessa narrativa que os cristãos encontram sua identidade e propósito.
E constrói uma formação moral e espiritual. A teologia pós-liberal também se preocupa com a formação moral e espiritual dos cristãos. Stanley Hauerwas, por exemplo, enfatiza que a igreja é o local onde os crentes são formados em práticas de vida que refletem o caráter de Cristo. Em vez de ver a moralidade cristã como um conjunto de princípios universais, a teologia pós-liberal foca nas práticas que são vividas e compartilhadas pela comunidade de fé, que forma indivíduos comprometidos com o amor, a justiça e a paz.
E, logicamente, tem diferença com outras teologias. Ao contrário do liberalismo teológico, que tenta adaptar o cristianismo aos valores seculares e universais, a teologia pós-liberal enfatiza a particularidade da fé cristã, suas tradições e narrativas, resistindo à assimilação cultural.
Mas se posiciona contra o fundamentalismo. Embora a teologia pós-liberal critique o liberalismo, ela se diferencia do fundamentalismo. O fundamentalismo, por vezes, adota uma leitura rígida e literal das escrituras, enquanto a teologia pós-liberal vê a Bíblia como uma narrativa viva que deve ser compreendida no contexto de uma comunidade de fé em contínua formação.
A teologia pós-liberal busca revitalizar o papel da tradição cristã em uma época de pluralismo e secularização. Oferece uma alternativa tanto à teologia liberal quanto às leituras mais conservadoras e fundamentalistas, propondo que a igreja recupere sua identidade distinta em meio a uma sociedade que tenta diluir suas crenças em favor de uma visão de mundo mais genérica ou secular.
Assim, a teologia pós-liberal defende que a fé cristã deve ser vivida e entendida dentro de sua própria narrativa e comunidade, e não traduzida ou moldada para se ajustar às normas liberais modernas. Ela coloca ênfase na singularidade da tradição cristã, enquanto rejeita tanto o liberalismo teológico quanto o secularismo contemporâneo.
Mas, vejamos agora, que interessante: o pós-marxismo e a teologia pós-liberal podem ser analisadas em termos de como ambos movimentos abordam questões de cultura, identidade, poder e política. Embora partam de tradições distintas -- uma ligada à filosofia política e social, e a outra ao pensamento teológico--, há alguns pontos de convergência e diálogo potencial, especialmente em torno de conceitos de comunidade, discurso e pluralidade.
Tanto o pós-marxismo quanto a teologia pós-liberal compartilham uma crítica ao liberalismo. No pós-marxismo, a crítica é direcionada ao liberalismo clássico, que privilegia o individualismo, o mercado livre e a noção de progresso histórico linear, desconsiderando a complexidade das relações de poder e das lutas sociais.
Já a teologia pós-liberal critica o liberalismo teológico, que – segundo George Lindbeck e Stanley Hauerwas – tenta moldar a fé cristã para se adequar à modernidade secular e liberal, perdendo o caráter distintivo das tradições religiosas.
Ambas as correntes enfatizam a importância das comunidades em oposição ao individualismo liberal. No pós-marxismo, especialmente em autores como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, o foco está na construção de alianças e identidades coletivas em torno de lutas específicas, sem uma totalidade universal pré-determinada. A teologia pós-liberal, por sua vez, vê a comunidade de fé como o espaço em que a identidade cristã é vivida e transmitida, resistindo à fragmentação do indivíduo típico do liberalismo.
A questão do discurso é central para ambos os movimentos. O pós-marxismo, influenciado pelo pós-estruturalismo, vê a construção da hegemonia política como um processo discursivo, no qual significados e identidades são negociados e formados. Da mesma forma, a teologia pós-liberal enfatiza o papel da linguagem e da narrativa na formação da identidade religiosa, afirmando que a comunidade de fé é moldada por seus próprios discursos internos e suas tradições narrativas, em vez de ser conformada por normas externas -- liberais ou seculares.
Ambas leituras reconhecem a pluralidade das experiências humanas e a contingência dos processos sociais e políticos. No pós-marxismo, isso se reflete na rejeição de uma visão determinista da história e na aceitação da multiplicidade de lutas sociais e formas de opressão. Na teologia pós-liberal, há uma ênfase na diversidade de tradições religiosas e na recusa de adaptar a teologia cristã a um modelo universalista e liberal.
Outro ponto de convergência é a crítica ao conceito de universalidade abstrata, que ambos os movimentos veem como uma imposição artificial. O pós-marxismo rejeita a ideia de uma classe trabalhadora universal como o único agente de mudança histórica, sugerindo que o sujeito político é construído a partir de múltiplas identidades e demandas. A teologia pós-liberal, por sua vez, rejeita a ideia de uma moralidade ou religião universal que se adapta a todos os contextos, argumentando que as tradições religiosas têm seus próprios critérios de verdade e moralidade.
Embora o pós-marxismo seja fundamentalmente um projeto político, e a teologia pós-liberal esteja voltada para questões de fé e prática religiosa, ambos compartilham uma preocupação ética com a construção de comunidades justas e com a formação de sujeitos éticos que resistam às imposições do liberalismo e do capitalismo.
Apesar dessas semelhanças, existem também diferenças importantes. O pós-marxismo está enraizado em uma tradição secular e materialista, enquanto a teologia pós-liberal é explicitamente teológica e voltada para questões da fé cristã.
Além disso, o pós-marxismo tende a ser mais focado em lutas sociais e políticas, enquanto a teologia pós-liberal está preocupada com a identidade e prática da igreja.
Embora operem em campos distintos, o pós-marxismo e a teologia pós-liberal podem se cruzar em suas críticas ao liberalismo e na ênfase que ambos colocam em comunidades, discurso e pluralidade. No entanto, suas abordagens à realidade social e espiritual diferem significativamente.
Frei, Hans
The Identity of Jesus Christ, Expanded and Updated Edition, (Cascade Books: An Imprint of Wipf and Stock Publishers, 2013).
'The "Literal Reading" of Biblical Narrative in the Christian Tradition: Does it Stretch or Will it Break?', in Frank McConnell, The Bible and the Narrative Tradition, (New York; Oxford: Oxford University Press, 1986).
Laclau, Ernesto
Hegemonía y estrategia socialista - Hacia una radicalización de la democracia. España: Siglo XXI. 1987. Em coautoria com Chantal Mouffe.
Lindbeck, George A.
La nature de la doctrine : religion et théologie à l'ère postlibérale[archive]. Louisville : Presse de Westminster John Knox. 1984.
L'Église à l'ère postlibérale [archive]. Grand Rapids, Michigan : William B. Eerdmans. 2003.
Mouffe, Chantal
Le paradoxe démocratique, Paris, Beaux-Arts de Paris éditions, 2016.
L'illusion du consensus («On the Political», trad. de l'anglais), Paris, Albin Michel, 2016.