Num país onde o discurso político promete modernidade e justiça social, persistem práticas económicas e sociais que empurram milhares para os limites da dignidade.

O caso das “Ana Paulas” – mulheres trabalhadoras, precárias, empurradas para fora do direito à habitação – é o retrato doloroso de um sistema que falha em proteger os mais vulneráveis.

Este artigo pretende fazer uma análise crítica e pedagógica do modelo económico português, identificado por muitos especialistas como um capitalismo de Estado, profundamente enraizado no centralismo administrativo e na subordinação do sector privado à tutela estatal.

 

O Capitalismo Lusitano: Entre o Estado e o Privatismo

O chamado “capitalismo selvático luso”, como alguns lhe chamam, não é novo. Desde o período salazarista, Portugal adoptou um modelo económico em que o Estado desempenha um papel central. Trata-se de um capitalismo de Estado, onde o poder público define as regras do jogo económico: controla o licenciamento, gere os fundos europeus e condiciona o desenvolvimento de sectores estratégicos.

Mesmo após a Revolução dos Cravos, o breve interregno das estatizações (1974-1977) deu lugar a uma nova aliança entre os interesses estatais e privados, especialmente a partir da adesão à Comunidade Europeia. Os financiamentos comunitários, em vez de democratizarem o acesso ao capital, tornaram-se instrumentos de reprodução das desigualdades, geridos numa “santa aliança” entre o Estado nacional e a burocracia de Bruxelas.

Na verdade, como sublinha o economista francês Thomas Piketty: 

"A concentração da riqueza é incompatível com a justiça social e com a eficiência económica."

 

Dados que Desmentem a Narrativa do Progresso

Apesar das promessas, Portugal continua abaixo da média da União Europeia em indicadores cruciais de desenvolvimento:

  • Em 2023, o PIB per capita português era de 31.100 euros, significativamente abaixo da média da UE (37.600 euros), colocando Portugal na 18.ª posição entre os 27 Estados-membros (Eurostat, 2024).

  • No mesmo ano, 1,8 milhões de pessoas viviam em pobreza monetária, ou seja, com menos de 632 euros/mês.

  • A remuneração média na administração pública subiu para 2.234€, enquanto no sector privado se manteve em 1.482€ — revelando um fosso preocupante entre os sectores.

Estes dados expõem uma economia assente na desigualdade estrutural, agravada por políticas laborais que sacrificam os direitos em nome da competitividade.

 

Uma Concertação Social Capturada

O Estado, longe de ser neutro, tem-se colocado frequentemente ao lado dos interesses patronais. Políticas de contenção salarial, facilitação do despedimento e enfraquecimento da negociação colectiva têm sido características constantes, alimentadas pela fragilidade de centrais sindicais como a UGT, cada vez mais próxima de uma visão cedencionista.

No centro deste cenário, emerge o que poderíamos chamar de "passospórtismo" e "vieiradasilvismo" — uma referência crítica a figuras políticas que, durante os últimos anos, moldaram a política económica com foco na austeridade e no favorecimento de grandes interesses.

 

A Pobreza como Estrutura, Não como Acidente

Segundo o Eurostat, 94,6 milhões de pessoas na UE estão em risco de pobreza ou exclusão social — 21,4% da população europeia. Portugal acompanha esta tendência, com os mais recentes dados a revelarem estagnação nos índices de combate à pobreza, apesar das declarações oficiais.

O que está em causa não é apenas a existência de pobreza, mas a sua naturalização estrutural num modelo económico que falha em compreender que a concentração da riqueza trava o crescimento económico sustentado.

Como afirmou Joseph Stiglitz, Nobel da Economia:

“Quando os recursos económicos são mal distribuídos, as economias tornam-se frágeis e as sociedades, instáveis.”

 

A Estratégia Europeia: Resoluções sem Força de Lei

Apesar das boas intenções, os mecanismos da UE, como o Método Aberto de Coordenação (MAC) — instrumento voluntário e não vinculativo — limitam-se a recomendar políticas. A chamada Estratégia de Lisboa de 2000, ou as recentes resoluções do Parlamento Europeu (ex. 12 de Março de 2025), estabelecem metas, mas não impõem obrigações legais aos Estados.

Este quadro revela as limitações de um modelo de integração que não garante justiça social por via legislativa, remetendo para a vontade política nacional a concretização de direitos fundamentais.

 

As “Ana Paulas”: Rostos Invisíveis da Economia Real

Num país cuja economia é hoje dominada pelo sector dos serviços, a procura por mão-de-obra barata torna-se a norma. As "Ana Paulas" — mulheres imigrantes, precárias, sem acesso digno à habitação — são vitais para o funcionamento da economia, mas invisíveis nos direitos.

A chantagem política de forças radicais como o Chega, com ameaças de expulsão no Parlamento, contrasta com a realidade: sem estas pessoas, a economia portuguesa colapsaria. A sua exclusão do acesso à habitação não é apenas uma violação de direitos humanos; é um paradoxo económico e ético.

 

Conclusão: O que Fazer?

Portugal precisa de um novo pacto económico e social, onde:

  • O Estado assuma um papel regulador, mas não capturado pelos interesses económicos.

  • A redistribuição da riqueza seja prioridade real, e não retórica.

  • As políticas europeias avancem para instrumentos vinculativos de proteção social.

  • Os direitos laborais e sociais sejam garantidos a todos, nacionais e imigrantes.

O país não pode continuar a aceitar a miséria como inevitabilidade, nem ignorar os rostos humanos da sua economia invisível. Como disse Amartya Sen, Nobel da Economia:

“A pobreza não é apenas uma questão de rendimento: é uma negação de capacidades e liberdades.”

📌 Nota Pedagógica: Quem são as “Ana Paulas”?

A expressão “as Ana Paulas” é utilizada como uma metáfora social poderosa, para representar milhares de mulheres — especialmente trabalhadoras precárias — que sustentam silenciosamente a economia portuguesa sem acesso a direitos fundamentais como habitação digna, segurança laboral ou proteção social.

Trata-se de um nome comum e simbólico, usado para:

  • Humanizar os dados estatísticos, atribuindo rosto e identidade às vítimas da pobreza estrutural;

  • Denunciar a invisibilidade sistémica, revelando a exclusão das mulheres trabalhadoras que, apesar de imprescindíveis, continuam esquecidas pelas políticas públicas.

No plural, “as Ana Paulas” representam:

  • Mulheres portuguesas e imigrantes,

  • Empregadas domésticas, cuidadoras e auxiliares,

  • Vítimas da economia informal e da precariedade.

Este recurso linguístico permite transformar a indignação em consciência e a estatística em narrativa.

Como dizia Simone de Beauvoir: "Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância."

 

📚 Fontes e Leitura Complementar: