Todavia, o livro não foge do velho enfoque literário, pois a personagem, de qualquer forma, atravessa uma década de “mares agitados”, com tragédias acontecendo o tempo inteiro ao seu redor. São os anos da ditadura militar, passados numa cidade industrial, Osasco, em São Paulo, com uma população majoritária de operários fabris e de pobres emigrados do Nordeste, Centro-oeste ou Norte do Brasil.
A história tem seu ápice no ano de 1974, quando a personagem se desloca de Glória de Dourados (MS), para Osasco, no período de passagem de sua adolescência para a maioridade. Nota-se logo que Mazé, como é carinhosamente chamada, não se arrisca, no novo destino, como muitos outros jovens de sua idade e época, nas tão frequentes e inevitáveis lutas de resistência à ditadura. Talvez isto se dê por falta de oportunidade, o que não significa dizer que seja desprovida de consciência política. Ao contrário, ela se empenha exatamente em fortalecer sua consciência através do trabalho e dos estudos, não medindo esforço para superar os obstáculos que lhe obstem o caminho. Lutadora incansável, corajosa, não relaxa um minuto sequer de sua existência para atingir o seu objetivo maior: tornar-se jornalista, e poder desvendar e escrever sobre esse mundo cruel à sua volta.
A personagem jamais está ausente da realidade. Através da leitura de livros e jornais, fruto de uma frequência regular às bibliotecas públicas, tenta compreender o que se passa no seu mundo objetivo: a miséria humana a olhos vistos pelas ruas, as tragédias quotidianas, que ela toma conhecimento à distância, e algumas até mesmo acontecidas ali perto, como a de um intrincado crime de paixão, que se passa em seu bairro, pertinho de sua casa, com desdobramentos nos quais chega a se envolver.
Mas é da área política que nasce o seu espanto mais genuíno e as suas frequentes inquirições: prisões, assassinatos, torturas, atrocidades diárias cometidas pelos órgãos repressivos, como no exemplo das mortes sob tortura de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho; ou do suplício de Frei Tito, massacrado e aprisionado em espírito pelo carrasco Fleuri; ou as brutais repressões contra os trabalhadores da Cobrasma, em greve por melhoria dos salários. Nesse cenário, assiste ao surgimento de novas lideranças operárias, inclusive à de Luís Inácio da Silva, quando ele se torna, no começo da imprevisível carreira, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Seu livro não deixa, assim, de ser focado na ditadura militar e na brutal realidade que dela emana, mesmo que os personagens não sejam militantes políticos.
A prefaciadora do livro de Mazé, a escritora sulmatogrossense Raquel Naveira, chega a compará-la à ganhadora do Nobel de Literatura de 2022, Annie Ernaux, cuja obra é quase totalmente autobiográfica, no estilo usado pela autora de Mares Agitados. A referência é, sem dúvida, pertinente. Mazé é detalhista. Parece que acabou de viver aqueles anos retratados, desde a saída de seus pais do sul do Ceará -- onde, no final do livro, ela vai para conhecer os avós e desvendar as origens da família; a chegada dos pais em Glória de Dourados, no antigo Estado do Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, onde se aventuram como novos colonos, adquirindo um pequeno sítio de café e onde Mazé nasce; e sua primeira e gloriosa jornada de vida, atravessando a infância e a adolescência, se estendendo até 1974. É aí que Mazé trabalha ajudando o pai em seus negócios e faz seus estudos primário e secundário, escolhendo se especializar em contabilidade. Aos 16 anos decide viajar para São Paulo, onde tentará trabalhar “com carteira assinada” e poupar recursos para financiar seus futuros estudos universitários. Mora, inicialmente, na casa de uma irmã já casada, que havia se antecipado no mesmo trajeto, até a chegada do pai com o resto da família, depois de trocar o sítio por duas pequenas casas velhas num bairro pobre de Osasco.
Recém chegada a Osasco, Mazé tem dificuldades de conseguir emprego, mas não desiste diante dos fracassos, embora tenha consciência das dificuldades, pois não tem experiência “comprovada”. Finalmente, consegue uma colocação como recepcionista de uma pequena empresa, o que lhe deixa extremamente feliz: pela primeira vez ganhará um salário mínimo, o que lhe possibilitará pagar seu curso de contabilidade numa escola das redondezas. Três meses depois, ela é dispensada e amarga uma certa desilusão. Mas volta a se empenhar em novas buscas de trabalho e acaba conseguindo um emprego ainda melhor do que o primeiro, e com um salário superior. Assim a vida continua, até desaguar na sua preparação para o vestibular de jornalismo, que acontecerá no começo do ano seguinte. Ela consegue passar em uma das três faculdades em que tenta e sua vida logo prenuncia uma completa mudança. Este marco serve de pretexto para o encerramento da história, pois nesse momento começará a trilhar uma segunda importante etapa de sua vida. Vida essa que o leitor fica esperando conhecer em outra oportunidade, em novas obras da autora.
Um belo e comovente livro, o Mares Agitados de Mazé Torquato Chotil. Em particular para quem nasceu no Nordeste do país e se aventurou a emigrar para o sul em busca de trabalho e de estudo, este livro despertará memórias imprescindíveis: o leitor irá reencontrar-se consigo mesmo, nas pinceladas de sua própria vida encontradas naquelas páginas cheias de empatia familiar, de valorização da amizade, da vontade de lutar e de vencer e da tomada de consciência de um mundo cruel e agitado. Um livro para nunca esquecer.
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A jornalista Mazé Torquato Chotil vive em Paris desde 1985, onde fez doutorado (Paris VIII) e pós-doutorado (EHESS). Mares Agitados é seu 14º livro publicado. Na capital francesa, faz intenso trabalho de divulgação da cultura brasileira, em particular de sua literatura, e escreve frequentemente para a imprensa brasileira e para blogs europeus. É uma das fundadoras e foi a primeira presidente da UEELP (Union Européenne des Écrivains de Langue Portuguaise).
Salvador, 20 de novembro de 2025