Já se passaram longos anos desde que o jornalista holandês, Pierre Van Paassen, contratado por um jornal do Canadá e enviado a Paris como correspondente de guerra, escreveu e publicou dois livros seminais sobre o período que vai da I à II Guerra Mundial, que ele acompanhou passo a passo: Estes dias tumultuosos e Somente nesse dia.

Trata-se de obras autobiográficas e, ao mesmo tempo, repletas de reportagens ensaísticas sobre este período conturbado da história da Europa e do mundo. Foram publicados no Brasil em 1940 e 1942, o primeiro pela Editora Globo, de Porto Alegre, e o segundo pela Companhia Editora Nacional. A tradução do primeiro coube a Leonel Vallandro e a do segundo, a Monteiro Lobato. Tais obras foram praticamente esquecidas.

Isso não aconteceu somente com Pierre Van Paassen. O ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1937, Roger Martin du Gard, autor de outra obra prima, Os Thibault, publicada no Brasil pela Editora Globo, em 1946, com tradução de Casemiro Fernandes, é outro que também foi esquecido.

Nessa mesma lista, deveríamos incluir ainda o Jean Cristhophe de Romain Rolland, igualmente ganhador do Nobel de Literatura, em 1915. Seu extraordinário romance foi publicado no Brasil ainda em 1941 pela Livraria Editora Globo, na Coleção Nobel, com tradução de Vidal de Oliveira.

Pierre Van Paassen acompanhou pari passo o surgimento e o apogeu do fascismo e do nazismo, que tiveram, indubitavelmente, raízes profundas no antissemitismo. Seu depoimento é estarrecedor e traz informações muito pouco conhecidas. Descreveu cenas e pormenores que são verdadeiras introduções à compreensão das razões da hecatombe que explodiu no mundo.

Roger Martin du Gard, tomando como escopo a vida de uma família burguesa de Paris, com seus três componentes principais, M. Thimault e seus filhos Antoine e Jacques Thibault, foi um exímio narrador das ações que decorreram durante o surgimento e o desfecho da I Guerra Mundial e, como tal, das origens econômicas e sociais da II Guerra, cujas raízes, como se sabe, foram plantadas na primeira.

Romain Rolland, por sua vez, com seu extenso Jean Crhistophe, publicado em 5 volumes, narra uma vasta história, que começa na Alemanha e vai desaguar na França, abarcando quase todo o período que envolve as duas grandes guerras, expondo todas as nuances, doenças e contradições das sociedades desses países bem como a base subjetiva do ódio visceral que se instalou nos povos europeus, que ainda não foi curado.

A meu ver, ninguém pode conhecer com profundidade a história da primeira metade do Século XX, com suas duas grandes guerras mundiais, sem a leitura dessas obras seminais que, embora não sejam livros específicos de história, são fundamentais para a compreensão das sociedades vigentes nos países europeus envolvidos nas ferocidades inomináveis daquele período. A descrição meramente factual perde de longe para o aprofundamento psicológico e humano típico dos livros de ficção.

É que a linguagem literária será sempre mais forte, porque somente ela é capaz de alcançar a alma de um povo, expondo a sua essência na narrativa das vivências diárias de seus personagens, no que se pode chamar de transbordamento dos sentimentos mais puros e profundos do ser humano.

Por outro lado, a literatura sempre tem as suas lacunas e falhas e o fato é que a maioria de nossos jovens escritores e leitores desconhecem essas três obras primas. Por isso é que, tentando despertar uma possível curiosidade para a leitura dessas obras, pensamos em  divulgar um breve capítulo de Somente nesse dia, de Pierre Van Paassen, que descreve, com uma simplicidade exasperante, como foi o nascimento do espírito vingador do maior carniceiro da humanidade: Adolf Hitler. Mas não somente por isso. Vamos divulgá-lo porque os “dias tumultuosos” daqueles tempos voltaram, com toda uma carga de novas contradições.

 

A OBRA PRIMA REJEITADA

Durante as longas tardes de verão de 1919 um moço metido num desbotado capote militar e de surrado chapéu de feltro a cabeça errava pelas ruas de Munique oferecendo cartões postais aos turistas e visitantes que afluíam para ali, apesar dos maus tempos por que passava a Alemanha. Esse moço era de estatura regular, mas claudicava de leve e tossia, evidentemente por causa dos gases venenosos que respirara no front ocidental. Um bigode negro e o cabelo despenteado fazia-o parecer muito mais velho do que  realmente era.

Impossível dizer se seria por efeito dos gazes venenosos ou da sua constituição débil que ele caminhava daquela maneira. Certeza só havia de que os anos de trabalho no exército não lhe melhoraram o físico.

Silencioso e quase esgueirante, como que envergonhado do que fazia, ele sacava do bolso o pacote de cartões postais assim que se aproximava um grupo. Mas embora preconizasse a sua mercadoria como original, feita a mão, e não simples fotografias coloridas, encontrava dificuldade em vende-la.

Noites e noites ele voltava triste e sem dinheiro para o seu cômodo em Mustergasse, onde vivia de sociedade com cinco ou seis outros jovens, vítimas também da tempestade que varrera a Europa. E de caminho ocasionalmente parava diante de um Konditorei, ou padaria, e olhava para os bolos e doces expostos. Depois, com um nervoso dar de ombros e um amargo sorriso, lá se ia a maldizer a injustiça que condenava um servidor da pátria e errar faminto pelas ruas duma cidade opulenta.

Nada o esperava em seu alojamento. Comida nenhuma. Seus companheiros eram pobres ratos de igreja ao seu tipo. E não olhava para o futuro com olhos esperançosos. Se no decurso do dia um deles obtinha serviço ou apanhava qualquer coisa de refugo no mercado ou porta dos fundos dos hotéis, aquilo era uma festa para todos. Raro, porém, acontecia. Usualmente compartilhavam crostas de pão seco do mais barato que houvesse, embolorado ou amanhecido.

À noite sentavam-se em seus catres e conversavam fumando pontas de cigarro apanhadas na rua. Ou dormiam. Raro havia entre todos eles meio shelim que lhes permitisse umas tantas horas de luz.

Segundo a praxe, cada dia ficava um no quarto para fazer a limpeza e cozinhar o que havia, quando havia o que cozinhar. O triste rapaz da tosse era frequentemente o escolhido para aquele papel, porque também tinha de ficar em casa mais amiúde para aumentar o seu estoque de cartões postais.

Ele pintava cenas rurais da Áustria e da Bavária, montanhas cobertas de neves, campos de trigo maduro, verdes montes com chalés no alto. Eram os seus principais temas. Nunca saia para pintar do natural. Seu físico e a taciturnidade interior impediam-no de fazer excursões pelos campos. Ademais queixava-se da fraqueza; qualquer caminhada um pouco mais longa o cansava. E, pois, pintava de memória. Pintura bem elementar, que só poderia ser considerada boa se viesse das mãos de meninos de escola.

Apesar disso aquele moço entretinha altas ilusões quanto às suas capacidades. Por várias vezes repetiu que se lhe deparasse oportunidade estava certo de fazer nome no mundo da arte. Tinha ideia de permanecer pintando até vencer. E não queria fazer mais nada. Era um artista e o caminho do artista é a arte e acabou-se.

No inverno seguinte as coisas melhoraram naquele cômodo. Dois dos seis companheiros obtiveram emprego Heimweher, a organização terrorista dos junjers e mais reacionários jurados na destruição da República de Weimar por meio do assassínio de proeminentes líderes trabalhistas e intelectuais democratas.

Era um trabalho perigoso, mas bem pago, e todos os seis ali da Mustergasse aproveitaram-se da situação, agora que dois estavam desempregados. Podiam comer e comprar roupas, em vez de se perpetuarem nos velhos uniformes da guerra. Também podiam dar-se a um pouco de prazer, bebendo ou trazendo para ali alguma mulher nua.

Essas celebrações, entretanto, não contavam com o concurso do jovem pintor. Permanecia distante, afundado no silêncio. Quanto maior a alegria dos outros, mais profundo se tornava o seu silêncio. E mais do que tudo se ressentia da entrada de mulheres. Falava aos companheiros da sua profunda repugnância pelas criaturas do sexo oposto.

Não obstante não saia dali para morar em outra parte. Gostava daquela vida boêmia. Agora que o dinheiro dos dois colocados dava para todos, ele podia levar vida mais folgada e passar na cama quantas horas quisesse, pensando e só pintando quando sentisse vontade.

A verdade é que ele não podia viver por si mesmo. Faltava-lhe energia física e espiritual. Não aguentava um dia de trabalho continuo. Tudo nele indicava uma condição física afetada pelo raquitismo infantil. Resfriava-se e tossia a mais leve mudança de temperaturas; seu ponto fraco eram os pulmões.

Aquele moço não fazia objeções às criminosas atividades dos seus dois companheiros. Aquilo dava-lhe pão e lazer. Permitia-lhe abandonar a venda de cartões pelas ruas e dedicar-se a coisas mais altas. Sua mesa de trabalho era junto à janela. Pintava quando os outros estavam fora. As manhãs, passava-as na cama. Ao meio dia lanchava num café da esquina e à tarde ficava diante do cavalete por umas tantas horas. Quando os companheiros voltavam, cobria a tela e punha-se a discutir política.

Concordava com seus companheiros que algo tinha de ser feito para restaurar a Alemanha na sua grandeza antiga – o que a República não estava realizando. Mas que fazer? Ninguém sabia. Provavelmente uma grande revolução, uma completa “limpeza da casa”. Mas ele não se sentia com animo de tomar parte em nada que exigisse esforço.

E havia as suas telas. Tinha grande esperança no quadro que começara a pintar e que poderia pô-lo no caminho da fama. Representava um homem nu, de cabelos loiros, quebrando os grilhões que lhe prendiam os pulsos e os pés. Na mão direita tinha um malho erguido contra um inimigo invisível. Aquele homem loiro era o símbolo da nova Alemanha, e a serpente vermelha que ele pisava era a República de Weimar. O pintor esperava submeter esse quadro ao júri e vê-lo na parede da exposição de pintura de Munique da próxima primavera.

Trabalhou no quadro durante todo o inverno. Várias vezes mudou a atitude do símbolo loiro, cada vez fazendo-o mais forte e viril; também aumentou a cabeça da cobra e introduziu um anjo ao fundo. Esse anjo estimulava o louro Prometeu Encadeado a fazer grandes coisas.

O quadro chegou ao fim e foi emoldurado com dinheiro fornecido pelos companheiros.

A 7 de maio levou ele a pintura à galeria. Ao entrar no edifício disseram-lhe onde estava a comissão artística – numa das salas do primeiro andar. O pintor subiu e bateu à porta da sala indicada. Lá encontrou cinco homens em redor duma grande mesa. O pintor declarou que viera com um quadro para a exposição e, descobrindo-o, exibiu-o aos juízes.

Um dos membros do júri pôs o pince-nez e riu-se. Outro chegou a mostrar-se embaraçado. O presidente do júri, porém, falou franco: aquele quadro não podia ser admitido. “A composição é má”, disse ele, “a ideia é crua e o trabalho geral, caótico e desordenado…”

O jovem pintor não esperou que o presidente terminasse a enunciação da sentença. Olhou por um momento para os juízes. Depois, sem uma palavra, embrulhou o quadro e saiu. Em baixo pediu ao porteiro que lhe desse o nome daqueles homens. Ao lê-los, disse: “Três dos cinco são judeus, não é verdade?” O porteiro fez que sim. O pintor voltou para casa e mandou ao presidente do júri um bilhete com estas palavras: Die werde ich diesen Juden nie – Nunca perdoarei isso aos judeus. E assinou o seu nome: ADOLF HITLER.

(Pierre Van Paassen, Somente Nesse dia, pag 256)

O que se deu depois, todos conhecem.

Ameaças são comuns na história dos povos e das guerras, mas nem sempre são cumpridas ou, ao menos, cumpridas à risca. O genocídio nazista tem agora uma nova face: o dominado de antes passou a ser o dominante de agora e outros povos é que estão sendo vítimas das novas ameaças que vão nascendo dos tiranos atuais. Depois que, numa tentativa de resistência, após anos e anos de perseguição e morte polos sionistas, o Hamas invadiu as fronteiras israelenses, matando centenas de pessoas e fazendo outras tantas reféns, Benjamin Netanyahu prometeu uma vingança “como nunca acontecera antes e que seus inimigos jamais poderiam imaginar.” Todos viram o que se passou e continua a se passar. Realmente, ninguém imaginava o tamanho das atrocidades, que podem arrastar o mundo numa nova e escancarada guerra.

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Paulo Martins – Editor Cultural