Durante meses, o Gato Zacarias viveu em plenitude: comida a rodos, noites tranquilas e escapadelas sorrateiras pela mesma janela por onde entrou.

Tudo para manter em segredo a mina que descobrira nas caves da PGR — um lugar onde, estranhamente, dossiers desapareciam ou ratos os devoravam.Mas com o súbito desaparecimento de ratos, ratinhos e ratões, começou o burburinho.

Os dossiers estavam menos danificados, o que dificultava certas “gestões”. Zacarias, que entendia perfeitamente o português — aprendido ao conviver com humanos — escutava as conversas de quem descia à cave. Estranhavam a falta de destruição e questionavam a qualidade dos seus “ratos”, sem saber que um gato operava no terreno.

Zacarias percebeu: cada vez que um dossier desaparecia ou mudava, surgia a possibilidade de reinventar a verdade. Um detalhe alterado aqui, uma página ratada ali e pronto: um novo processo, uma nova versão dos factos.

Perfeito para os humanos — por razões que só eles conhecem.Mas o gato foi descoberto. Tentaram envenená-lo, usando os ratos como isco. Instalou-se, então, a política: “Matem o Gato”. Ele era agora uma ameaça à logística da manipulação processual. Tornara-se o bode expiatório de críticas às más condições técnicas e à falta de organização.“Matem o Gato?”, pensou ele. “Acham que me matam assim, tão facilmente?” — murmurou, lembrando-se das sete vidas que os humanos lhe atribuíam. Sete: número mágico, número de sobrevivência.Zacarias conhecia cada canto escuro da PGR, cada corredor.

A janela ainda estava aberta. Os ratos continuavam por lá — menos, é certo, mas suficientes. Estava pronto para tudo. Mas desta vez, decidiu não fugir. Era hora de contra-atacar.E contra-atacou.Numa noite escura, surgiu diante de mim.

Olhou-me nos olhos e falou. Sim, falou. Gatos falam — como o da Alice, de sorriso iluminado e reflexões certeiras. Zacarias contou-me tudo: a conspiração, o envenenamento, o silêncio cúmplice. Ouvi-o, mudo. O que ele dizia era grave. Escandaloso.

Com ramificações internacionais — pois naquela cave guardavam-se também processos globais.Pensei em fingir que não o ouvira. Zacarias, enroscado aos meus pés, fingia desinteresse. Os gatos são assim: querem tudo, mas fingem que não querem nada. Eu hesitava.Mas a história não terminava aí.Zacarias descobrira, por acaso — por ter entrado na “janela errada” —, a mecânica obscura dos desaparecimentos seletivos.

Um pouco de queijo num dossier, e desaparecia a parte incômoda. Um rato bem alimentado, e lá se ia a prova decisiva. Tudo funcionava. Até que ele chegou.Tão enrolado aos meus pés quanto à própria história, o gato contava tudo.

E mais: trazia provas. Um dossier “ratado”, do tal Banco da Borboleta — símbolo de duvidoso gosto, pensei — com páginas estrategicamente comidas. Um homem, preso há demasiado tempo em Évora, aguardava julgamento sem que o processo estivesse completo. E Zacarias sabia disso.O silêncio entre nós começou a incomodá-lo.

Levantou-se e roçou-se em mim. Era hora de agir.— Vamos então? — pareceu dizer.— Vamos. Ou melhor, vou eu e tu vens comigo. Terei de te proteger — respondi.E Zacarias, fiel à sua maneira, roçou-se mais uma vez na minha perna esquerda — a que ele sempre preferia — e respondeu com o corpo:“Onde fores, vou eu.”