Com o desaparecimento repentino de ratos e ratazanas, os humanos começaram a estranhar. Os dossiers já não apareciam tão danificados. A gestão tornava-se mais difícil.Zacarias, fluente em português — aprendeu vivendo entre humanos — ouvia os comentários na cave: questionavam a eficácia dos “seus ratos”, sem saber da sua presença felina. E percebeu algo crucial: cada vez que um dossier desaparecia, surgia a oportunidade de criar uma nova verdade.
Uma reinterpretação conveniente dos factos. Um jogo humano, útil sabe-se lá para quê.
Mas então começaram os perigos.Descobriram-no. E passaram à ofensiva: envenenaram ratos, esperando que ele os comesse. Instalou-se na PGR a política do “Matem o Gato”.
Era visto como um obstáculo à manipulação de processos e às desculpas técnicas usadas por quem critica o sistema.“Matem o Gato?”“Matar-me a mim?”, pensou Zacarias. “Acham fácil matar um gato?” — ainda por cima um gato vadio, forjado em combates, becos e noites sem luar.
Um gato com sete vidas. Um gato que conhecia cada sombra daquela cave.Estudou o ambiente: a janela ainda aberta, corredores obscuros, ratos ainda presentes — não tantos quanto antes, mas suficientes. Sabia que, se necessário, podia fugir. Mas não queria apenas fugir. Era hora de contra-atacar. E contra-atacou.Numa noite escura, apareceu-me. Olhou-me com aquele brilho que só os gatos têm, e falou. Sim, falou.
Quem diz que gatos não falam nunca conheceu o da Alice ou o Zacarias.Relatou-me tudo: a vida na cave, a conspiração, a tentativa de assassinato. Fiquei em silêncio. Sabia que era grave. Um escândalo com potencial para ultrapassar fronteiras — porque ali, naquela cave, guardam-se processos internacionais.
Pensei em ignorar. Fingir que não ouvi. Zacarias, enroscado a meus pés, fingia desinteresse. Os gatos são assim — astutos, fingidores. Quando mais querem, mais disfarçam.
E eu entalado.