Zacarias ouvia tudo. Entendia português — vivera tempo suficiente entre humanos para isso. Já quanto às outras línguas que lhe passavam pelos bigodes nos corredores, dessas nem queria saber. Se tivesse escutado a história da Torre de Babel, talvez compreendesse o caos linguístico. Mas isso era para humanos. O seu foco estava noutro tipo de ruído: o burburinho que nascia entre procuradores e funcionários intrigados com a escassez de dossiês danificados. Começavam a suspeitar da qualidade dos ratos. Mal sabiam que o verdadeiro agente infiltrado tinha quatro patas e sete vidas.
Com cada página que desaparecia ou não era roída como devia, percebia Zacarias: ali estava a arte humana de fabricar novas verdades, novos factos, novas interpretações processuais — tudo em nome do “interesse superior”. E, percebendo isso, percebeu também que se tornara incómodo.
Começaram os boatos. “Matem o Gato.” Primeiro em sussurros, depois em ordens mais sérias. Envenenaram ratos, tentaram usá-los como isco. O plano era simples: que o gato morresse por acidente. Mas Zacarias, mestre de becos, herói de mil luas, escorregadio como só os gatos de rua conseguem ser, sobreviveu.
Matem o Gato? — pensou ele. Acham que é assim tão fácil matar um vadio calejado, feito de sombras e silêncios? Número sete — número mágico, de resistência, de construção. O Gato Zacarias não se rendia.
Começou o contra-ataque.
Numa noite sem lua, apareceu-me. Ali estava, à minha frente. Contou-me tudo, com aquele brilho sábio nos olhos e o rabo enrolado aos pés como quem diz “agora és tu que tens de decidir”. Disse-me do veneno, das emboscadas, dos corredores encharcados em paranoia. Falou-me dos dossiês semi-roídos, dos segredos mastigados com precisão cirúrgica. E eu ouvi. Em silêncio. Que fazer?
Sabia que o que Zacarias me contava podia abalar muito mais do que a PGR. O escândalo tinha pernas para atravessar oceanos, envolver processos internacionais e pôr em causa o tal "sistema". E como todos os grandes escândalos, nasceu numa cave húmida. E numa janela entreaberta.
A partir daquele momento, o Gato Zacarias não estava sozinho. Ia comigo — ou eu com ele. Ele roçou-se na minha perna esquerda (a preferida) e disse sem dizer: “Vamos.”
Foi então que comecei a escrever. A juntar peças. A cruzar relatos. A confrontar versões. A fazer o que a PGR, aparentemente, não queria: investigar.
Os da PGR perceberam que havia gato. E, mais grave ainda, que o gato escrevia. A frase “Matem o Gato Zacarias” passou de murmúrio a grito histérico pelos corredores. Os ratos — coitados — nem sabiam para onde fugir. A paz fétida da cave foi substituída por cheiro a pólvora.
Mas nada adiantava. Zacarias já tinha falado. Já tinha deixado rasto. Já tinha entregue — com ar distraído e patas sujas — um dossier roído sobre o célebre “Banco da Borboleta”, um dossier que explicava porque razão certos presos se mantinham encarcerados sem prova à vista e porque razão outros escapavam como peixes em água turva.
Zacarias, com o seu andar ladino e ar de quem não parte pratos, desmascarava uma estrutura que usava ratos como ferramenta de edição seletiva. Um bocadinho de queijo aqui, uma página a menos ali — e lá se ia a razão para uma acusação ou absolvição.
Agora, Zacarias já não se escondia. Já não roía por acaso. Roía com estratégia. Roía para expor. E ao ver-me decidido, roçou-se de novo. “Vamos.”
Mas não era só eu. Era o público. Eram as redes. Eram os olhos que começavam a ver. Era a narrativa, alimentada por um gato e difundida por mim, que começava a escapar ao controlo da cave. E os gritos — esses — já não eram só dentro do edifício. Eram fora. Eram virais.
Porque um gato pode ser só um gato.
Mas quando começa a falar, e os humanos a escutar, até o mais podre dos arquivos ganha vida.