NOVOS FRAGMENTOS (II)

Para um Discurso sobre a Poesia
(Em torno de Novalis)

 

Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2024. 10-2024

1.

Dá que pensar esta enigmática frase de Novalis: “Man ist allein mit allem, was man liebt” *. Está-se só, com tudo o que se ama. Amar é, pois, absoluta solidão, a que resulta de isolamento em relação ao mundo circunstante? No amor suspende-se a comunidade de vida? Se o amor for “realmente (wirklich) uma doença” da alma (Novalis, 2024:145; e Stendhal, em “De l’Amour”, no prefácio da edição de 1826), esta solidão é como a que sofremos com a doença física? A verdade é que ninguém pode estar doente por nós e, por isso, ninguém pode amar por nós. O amor e a doença não se podem delegar. O amor, sendo “uma doença da alma”, convoca irremediavelmente a solidão?

2.

Na doença, a solidão dita lei. E no amor, sendo uma “doença da alma”, também? No amor estamos sós, mesmo quando temos à nossa frente o ser amado? Ou a solidão é relativa ao mundo circunstante e exclui o ser amado?  A verdade é que quando se trata de dois seres humanos já não é solidão. Mas a partilha só pode acontecer se for como sentimento, não como doença, a mesma doença, mesmo que essa seja “doença da alma”, não do corpo, seja de amor. Eu sinto-me doente porque tu estás doente. Sentir-se doente significa uma forma de partilha. O que não se poderá dizer é “eu amo-te porque tu me amas”. Mas também é verdade que o amor não é uma relação entre casulos incomunicáveis, onde cada um está encerrado em si próprio. Se fosse, não haveria amor. E também é certo que o amor não é dádiva, por generosidade. Simplesmente, acontece. Exactamente como a poesia. É o próprio poeta que o diz (Pessoa). O amor e a poesia acontecem. Não são objectivos pré-determinados, resultado da vontade. Simplesmente, acontecem.

3.

Alguns chamam platónico ao amor não correspondido. É este o que é vivido em solidão? Ou é o amor em si que induz solidão absoluta, mesmo quando é correspondido? Solidão daquele que ama. A solidão integra o próprio acto de amar? De cada um dos dois que se amam? O amor seria um círculo fechado sobre si mesmo onde o outro seria, sim, imprescindível, mas como  pura ilusão? Mas é difícil que aconteça uma dupla e recíproca projecção da ilusão na relação amorosa. O outro ser para cada um deles a respectiva ilusão especular. Pura projecção noutra pessoa do seu eu mais profundo. Até há a ideia de que o ser amado é, afinal, a ressonância, em diferido, de algo com que nos identificámos na infância ou até mesmo da afeição materna. O ser amado seria, então, como que um espelho. O espelho perfeito. Não sei. Talvez não. Talvez seja mais do que isso. A dialéctica identidade-alteridade talvez possa explicar, em parte, a relação amorosa. Mas sabe a pouco.

4.

Será o amor uma forma de resgate, com força pulsional, do que ficou recalcado na nossa zona de sombra primordial?  O amor é uma pulsão que se basta a si própria e que apenas se serve de outrem para se concretizar? Vulcão que se cristaliza onde a lava parar? Ou amar é sair de si e dissolver-se no outro, ficando por lá, prisioneiro? Como a vela que morre para dar luz, para iluminar (Goethe)? Consumir-se em fogo ateado pelo destino para iluminar? O amor autêntico talvez seja isso: fogo que arde sem se ver, mas que consome interiormente até à anulação total. No fim, cera derretida. Amar é perder-se para si, entregando-se ao outro. O poder avassalador da pulsão.  Por isso, o fim de um amor é insuportável porque parece que já não há regresso possível à condição de partida. A vela que ardeu já não pode ser restabelecida. Porque só ficaram cinzas. Melhor, uns restos de cera ardida. Perante uma entrega total já não há retorno. E não há cartografia que possa repor a “diritta via” (Dante). Por isso, é mais grave do que a solidão. É perdição. Retorno impossível. Dupla perda: do ser amado e de nós próprios. Já não é, pois, solidão. É mais grave. Lembro-me sempre dos versos de Dante Alighieri no começo do “Inferno”, na “Divina Commedia”: “Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per uma selva oscura / ché la diritta via era smarrita”. Sim, a partir desse momento é pura errância e perda de sentido, com o chão a perder firmeza e a fugir dos pés. É como entrar num território vazio e escuro.  Ou, então, “selva oscura”.  Sobrevêm a tristeza, a nostalgia, a melancolia. Um sentimento de impotência. Felicidade suprema, dor insuportável. E não há cura para este amor de entrega total?

5.

Este estado de alma pode ter redenção se for cantado e verbalizado em pauta musical e em estado de levitação. Perda sofrida, levitação desejada (Calvino). O desejo. Força arrancada das vísceras da alma. Parece ter sido esta a origem da poesia. Um clarão, estremecimento e queda num buraco negro. Esse instante de que fala Baudelaire no poema “À une Passante”. Um clarão seguido de encandeamento e de despiste existencial: ausência, silêncio, solidão, tristeza, nostalgia, melancolia, dor. Dor pelo que não aconteceu, mas que poderia ter acontecido se essa mulher não tivesse sido engolida  rapidamente pela multidão. Coisa grave, muito grave, se for verdade que, afinal, “o amor” não é só “doença da alma”, porque é “o objectivo final da história do Mundo” (Welgeschichte) – “das Amen des Universums” ( 2024: 92-93). O amen do universo. E, por isso, que o senhor esteja com o poeta, perante tamanha perda, diria um religioso, crente num além promissor, na redenção, no sagrado. Mas não é esta a reacção do poeta. Talvez este seja, afinal, o amor cantado por ele, aquele que está mais próximo  do invisível do que do visível. A cura e, por isso, o “amen do universo”. A doença que, na poesia, se transforma em aleluia, em alegria, júbilo.  Ele tem um remédio terreno (remedium amoris), no lado de cá, que o eleva para além da doença e da dor: a poesia, “a grande arte da construção da saúde transcendental” (2024: 47). Sim, saúde transcendental para esta “maladie de l’âme”. Estranha esta formulação, não é? Não, porque a poesia funciona mesmo no território transcendental (que não se confunde com o transcendente). Este território é o das condições de possibilidade que, a um certo ponto, podem ser assumidas como reais e determinarem comportamentos. O poeta ama com palavras e é um amor efectivo, não inferior, em densidade existencial, ao amor corpóreo. As palavras são o corpo da alma. E têm som, melodia e ritmo. São vivas. O ser amado está ali em frente, na imaginação do poeta, e este dirige-se-lhe com palavras. A performatividade é total. Só assim a dissolução do eu se pode converter, transformar em sublimação, apesar de a solidão ser irremovível. Dissolução-sublimação, a equação poética. E mantém-se a solidão porque a poesia é solidão, ainda que a comunhão exista como processo diferido no espaço e no tempo. O que lhe dá ainda mais realismo. Como possibilidade, como comunhão transcendental. O poeta age como se o ser amado esteja à sua frente. O beijo escrito é beijo dado (se não for bebido pelos fantasmas, ou mesmo assim). O centro da filosofia de Novalis: a poesia como o verdadeiro real absoluto. Por isso, quanto mais poético mais verdadeiro (2024: 77). O que vale também para o amor cantado poeticamente. A cura da “maladie de l’âme”. O poeta antecipa uma comunhão de destino ao lançar os versos ao vento que passa, aparentemente sem destino. Fica só e espera que eles lhe sejam devolvidos como eco. E como acto de amor. A poesia é o eco do silêncio com um imenso poder performativo. É sobre o silêncio que o poeta viaja à procura de sentido. “Desejos e apetites são asas”, diz Novalis (2024: 25). E mais leves quando se reproduzem em palavras. As asas da poesia. É esta a condição da cura, provisória, até à próxima recaída, pois a “doença” nunca se cura totalmente. Afinal, ela é condição de sobrevivência da própria poesia. A pena de Sísifo, para quem a tristeza se torna doce melancolia sempre que atinge o Monte Parnaso.

6.

Parece, pois, legítimo perguntar se o poeta espera resultados práticos da sua interpelação poética. A resposta é fácil. Como em todas as artes, as suas propostas são desinteressadas, não visam efeitos práticos que não sejam o ressoar das palavras na sua alma e no ambiente circunstante. Ele canta, pois, por cantar? Não, ele canta porque a vida o interpela e o convoca para cantar. É neste sentido que se pode dizer que a poesia lhe acontece, ao poeta, e que não resulta de um acto voluntário, de um acto de vontade, de uma deliberação. Ela simplesmente acontece-lhe. Mas só lhe acontece porque já existe pré-disposição: “Hauptsatz – Man kann nur werden insofern man schon ist” (Novalis). Só podemos tornar-nos se já formos. Digo muitas vezes que quando falta o “chip” do sentimento nunca será possível a emoção. Nestas condições, ela nem sequer poderá ser induzida. Ao poeta acontece-lhe a emoção sublimada em palavras porque já está marcado (o estremecimento perante um clarão), como destino. Mas se as palavras lhe faltarem a doce melancolia em que se encontra instalado sofre uma regressão e volta a ser tristeza, luto, depressão. Um poeta em falência a regredir para o fracasso existencial, sem redenção. A morte do poeta.

7.

“O poeta utiliza as coisas e as palavras como teclas e toda a poesia repousa sobre uma activa associação de ideias – uma espontânea, deliberada e ideal produção do acaso” (2024: 125). Sim, mas não se trata, como pode parecer, de puro virtuosismo de execução porque, como ele diz, só o artista (e, portanto, também o poeta) é capaz de adivinhar o sentido da vida (2024: 53) e porque o verdadeiro poeta é “omnisciente” (allwissend), enquanto “é um mundo real em pequeno” (2024: 59). Conjugando quanto diz Novalis, verifica-se que a poesia possui densidade ontológica e, através de uma exímia manipulação da sua matéria-prima (coisas sentidas e palavras), consegue produzir conscientemente “acaso”, resultados aleatórios que resultam da sua fecunda imaginação poética, a tal que pode substituir todos os sentidos. Muitas vezes tenho comparado a poesia com as técnicas da psicanálise, designadamente a interpretação dos sonhos e as livres associações de palavras-ideias. Encontrei em Novalis esta formulação, que parece confirmar esse mecanismo poético. Na verdade, ambas, poesia e psicanálise, se alimentam de matéria constante da zona de sombra da consciência, accionando o processo da verbalização. Neste processo a poesia acciona as categorias da arte não só para trazer à consciência, de forma cifrada, os estados de alma, mas também para os projectar esteticamente e assim os partilhar. A natureza da poesia, no seu conceito, garante que não se trata de artificialismo, mas sim de algo vital. Diz ele: “a pura linguagem poética deve ser (…) organicamente viva” (2024: 37). Mais claro do que isto não é possível. De resto, para ele a poesia é a “arte de excitar o ânimo” (2024: 135). 

8.

Lembraram-me que o Bernardo Soares disse que de tanto sonhar ele próprio se tornou um sonho, o sonho de si mesmo. Parece estranho, mas não é. Vejamos por que razão o que ele diz tem fundamento. Sobretudo se for poeta, o que não era o caso do Bernardo Soares. Tem fundamento porque poetar é sonhar. E a figura do poeta é indissociável do sonho/poema. Não era o grande Calderón de la Barca que dizia que “la vida es sueño”. E que o sonho vida é. A vida em palavras, que são o que de mais humano o ser humano tem. Ando às voltas com o Novalis e verifico que ele diz algo que pode ajudar a compreender esta afirmação do Bernardo Soares: “a imaginação é esse sentido prodigioso que pode substituir (em itálico: ersetzen) todos os nossos sentidos” (2024: 78-79). A imaginação com o mais completo poder sensorial. É daqui (e da sua musicalidade) que vem o poder performativo da poesia. Que trabalha com a imaginação, sim, mas com a que está ancorada na alma (não é, pois, um mero exercício estilístico). Só depois ascende ao espírito, que é “a alma cristalizada” (2024: 127). Mas ele diz outra coisa que, essa sim, completa a explicação: “Os verdadeiros produtos devem produzir, novamente, o que os produz. Do produzido nasce, de novo, o produtor” (2024: 87). É só substituir produto por sonho/poesia e produtor por poeta. É a poesia em acto que produz o poeta. Do sonho nasce, pois, o poeta que o escreve. Em cada poema o poeta renasce. Tem, pois, razão o Bernardo Soares. Portanto, mais uma vez de acordo com esse artista que dizia que não se ajeitava com a poesia… e que nem sequer era, dizia ele também, filósofo, apesar de, curiosamente, se identificar ele próprio como sonho sonhado da poesia. Ele era, sim, as duas coisas. Pelo menos porque também era Fernando Pessoa e porque escreveu o “Livro do Desassossego”.

9.

Confesso que já nem sei se viveria em paz comigo próprio sem poesia. O ritual do domingo ajuda. Dá-lhe forma, materializa-a, partilha-a. É a um tempo “durée”, mas também acontece no tempo cronológico.  A minha missa laica. A melancolia é o estado de alma permanente do poeta e os poemas são sempre inspirados na musa do suave, mas inebriante, perfume. Por isso, o lugar de inspiração é (quase) sempre o jardim. Um perfume que excita a imaginação do poeta, aquela que, segundo Novalis, concentra em si todos os poderes dos sentidos. Sim, o poeta viverá sempre nos seus versos porque foi assim que ele nasceu. E é por isso que renasce em cada canto. Há um período de delicada (e sempre difícil) gestação e há a apoteose final – o poema. O poema já é festa, celebração e, de certo modo, redenção, resgate. O ritual integra tudo isto e, no fim, o poeta já é outro. Renasceu.  

NOTA

* Uso a edição da Assírio&Alvim dos Fragmentos de Novalis (Porto, 2024, 3.ª edição, pág. 150), com selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes. Trata-se de uma edição bilingue, mas esta frase tem uma gralha no texto alemão, ou seja, onde se lê “mit allein” deve ler-se “mit allem”. JAS@10-2024