UMA NEGROLUMINOSA VOZ

Quem, das novas gerações, conhece a cantora lírica brasileira Maria d’Apparecida (1926-2017), que brilhou nos palcos líricos da Europa durante décadas do século passado? Se você não conhece, vamos primeiramente despertar sua memória com a transcrição integral do poema A Voz, que Carlos Drummond de Andrade escreveu em sua homenagem:

O Brasil tem muitas Aparecidas.
Tem Aparecida de Goiânia e de Goiás.
Tem Aparecida de Minas e do Oeste, no Paraná.
Tem Aparecida do Tabuado, em Mato Grosso,
e tantas outras, onde quer que a fé provoque aparições.
Tem sobretudo Aparecida de São Paulo,
onde uma santa apareceu nas águas do rio
e era uma santa negra do barro e do limo das profundezas do rio.
Pescadores a trouxeram, um altar a recolheu.
E há mais de dois séculos Nossa Senhora da Conceição
distribui milagres entre os humildes e os poderosos,
igualmente necessitados de milagre.

Maria d’Aparecida, não vieste das águas do rio.
Vieste de mais longe,
de um mais profundo abismo de raça e de sonho.
Tua voz caminheira
nos conta do que paira além da ciência dos Conservatórios
e do tratamento operístico da vida.
É uma voz que vem das entranhas do vento e dos coqueirais,
do sigilo dos minérios e das formações vulcânicas do amor.
Terrestre. Telúrica. Mulher.
Tua voz, d’Aparecida, é aparição
fulgurante, sensitiva, dramática
e vem do fundo negroluminoso de nossos corações
e vai, e volta, e vai.
Maria d’Aparecida do Brasil,
aparecedoramente cantaril.

 

Este poema de Drummond (que por si mesmo mereceria um estudo à parte, pelo uso da metalinguagem como meio de traduzir uma das mais lindas vozes que já se conheceu) foi o começo do resgate da memória da cantora lírica e popular Maria d’Apparecida Marques, a primeira intérprete afrobrasileira a brilhar nos palcos parisienses e europeus. Segundo Drummond, não se tratava de uma voz qualquer, como tantas que o Brasil produziu, mas de uma voz que “emergiu das entranhas do vento e dos coqueirais, do sigilo dos minérios e das formações vulcânicas do amor”. Enfim, era uma voz “terrestre” e “telúrica” de uma mulher especial:

Tua voz, d’Apparecida, é aparição

Fulgurante, sensitiva, dramática

E vem do fundo negroluminoso de nossos corações.

 

Como se pode ver, Drummond precisou construir três belíssimos neologismos para traduzir a sonoridade da voz de Maria d’Apparecida: “negroluminoso, aparecedoramente e cantoril”.

 

Não foi por outra razão que a escritora brasileira residente em Paris, Mazé Torquato Chotil, ao dar continuidade a este resgate histórico iniciado por Drummond, usou um de seus neologismos para intitular seu importante livro que esboça a vida da famosa mezzo soprano brasileira: MARIA d’APPARECIDA, NEGROLUMINOSA VOZ.

 

E Mazé não se limitou a escrever a biografia de Maria d’Apparecida, mas se empenhou durante anos em divulgar a sua obra. Residente em Paris desde 1985, teve oportunidade de conhecer a cantora e acompanhou a sua carreira com inusitado interesse, elegendo-a como ídolo, tal era sua admiração pela cantora. Tornaram-se amigas e alguns anos antes de Maria  falecer, em julho de 2017, chegaram a fazer um acordo pelo qual Mazé ficaria responsável por escrever a sua biografia, pelo que Apparecida começou a lhe passar documentos diversos sobre a sua vida. Tempos mais tarde a cantora se desiludiu, achando que não valia a pena e desistiu da ideia. Mazé, após a morte da cantora, levou a tarefa até o fim.

 

Desde então, Mazé não tem medido esforços para eternizar a memória desta negra de voz incomparável, que encantou os parisienses e o mundo ao interpretar Carmem, de Bizet, em 1965, substituindo Maria Callas, que não pôde se apresentar na Ópera de Paris. E agora pode colher os frutos deste trabalho, ao ver se tornar realidade a inauguração da placa histórica comemorativa da memória da lendária cantora negra, na casa onde Maria d’Apparecida residiu por 40 anos, no 16eme arrondissement de Paris.

 

O evento se torna ainda mais importante pelo fato de Maria d’Apparecida ser negra e ter vivido numa época em que o racismo grassava no Brasil e na Europa. “Filha de uma empregada doméstica engravidada pelo patrão, Maria d’Apparecida nos faz lembrar das crueldades de classe e de raça sobre as quais se assenta a sociedade brasileira. Suas conquistas se deram superando essa injustiça estrutural e lembrá-las é uma forma ao mesmo tempo de reconhecer seu talento gigantesco e de denunciar nossas raízes mais venenosas”, diz Mazé em sua obra biográfica. Lembremos, também, que Maria d’Apparecida jamais conheceu seu pai.

 

O fato é que Maria d’Apparecida enfrentou todos os desafios e se tornou vitoriosa, impondo o seu talento diante dos entraves de uma perversa realidade social. Com o recrudescimento do racismo nos tempos atuais, o exemplo da Maria d’Apparecida precisa ser lembrado e ressaltado, para que a chaga do racismo não triunfe diante das novas gerações.

 

Para se ter uma ideia do prestígio da cantora, é preciso lembrar ainda de dois fatos relacionados à sua vida. O primeiro foi sua prolongada relação amorosa com o famoso pintor surrealista Félix Labisse, de quem se tornara a grande musa. Mas Labisse era casado e d’Apparecida muito amiga de sua esposa, que até lhe contemplou no seu testamento. No curso desse relacionamento, não foi Labisse quem se destacou nos píncaros da glória, mas Maria d’Apparecida. Ganhou todos os prêmios musicais e honoríficos importantes, não só do Brasil como da França e outros países: Ordem do Rio Branco, do governo brasileiro; Légion d’Honneur – Chevalier Officier des Arts et des Lettres, recebido das mãos do presidente François Mitterrrand; Medalha da Cidade de Paris, recebida das mãos de Jacques Chirac; Diploma de Honra e Medalha de Prata no concurso internacional de Música G.B. Viotti, Vercelli, Itália; diploma de Honra ao Mérito Carlos Gomes, do Brasil; Medalha Sílvio Romero; medalha de ouro do mérito artístico do Rio de Janeiro, Brasil; cidadã de honra do Rio de Janeiro; medalha de ouro da Société d’Encouragement au Progrès (França); medalha Fefieg – Federação das Escolas Federais isoladas do Estado da Guanabara; e medalha da ABI – Associação Brasileira de Imprensa.

 

Teve ainda quatro de seus discos premiados: Chants Brésiliens, com o violonista Turíbio Santos, Grand Prix de L’Acazdémie Lyrique Orphée d’Or (1966); The Wonderful Latin American Sound of Brazil (nº 2), com o harpista da Ópera de Paris Bernad Galais, recebendo o Prêmio Printemps de Suède (1971); Maria d’Apparecida canta o Brasil, com o pianista Wilfredo Voguet levou o Grand Prix de l’Académie du Disque Français, categoria Música Folclórica (1972); e, por último, Brasileiríssimo, levou o Grand Prix International Académie Charles Cros (1988), prêmio que só grandes compositores/cantores como Jacques Brel haviam  tido a honra de receber.

 

Vale salientar que, impedida de continuar sua carreira como cantora lírica por causa de um acidente, d’Apparecida não arriou a bandeira de luta e passou a se dedicar à MPB. Já tinha se destacado anteriormente, no Brasil, nos primórdios de sua carreira, como grande divulgadora do folclore popular nacional, e agora voltava ao popular, se destacando como cantora de MPB, tendo gravado um disco com Baden Powell em 1977, o mais vendido de sua carreira. Ficou conhecida como cantora dos três estilos: lírico, MPB e folclore popular. Deixou numerosos álbuns gravados. Seu repertório inclui composições de Villas Lobos, Heckel Tavares, Jaime Ovale, Turíbio dos Santos, Chico Buarque, Vinicius de Morais, Gil, Tom Jobim e Baden Powell. Brilhou com suas apresentações em Porgy and Bess, West Side Story e La Voix Humaine e outras obras capitais da música universal.

 

Mazé Torquato Chotil é jornalista, pesquisadora e doutora em ciência da informação e da comunicação pela Universidade de Paris VIII. Nasceu em Glória de Dourados (MS),e mudou-se para Paris em 1985. Além de sua obra sobre Maria d’Apparecida, é também autora de José Ibrahim: o líder da primeira grande greve que afrontou a ditadura, Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), Lembranças do sitio, Lembranças da Vila, Minha aventura na colonização do Oeste e Minha Paris brasileira. Em língua francesa é autora de L’Exil ouvrier e Ouvrières chez Bidermann: une histoire des vies. Em 2022 foi organizadora e fundadora da UEELP (Union Européenne des Écrivains de Langue Porguaise),com sede em Paris, tornando-se seu primeiro presidente.

 

 

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