O massacre da Reforma protestante na França

A Reforma protestante começou no século XVI, em meio a diversas revoltas em relação à Igreja Católica. Os reformistas (ou protestantes) acreditavam que a Igreja estava mais preocupada com poder e dinheiro do que com a salvação das pessoas, e que precisava ser reformada. No início do século XVI, o monge alemão Martinho Lutero, abraçando as ideias dos pré-reformadores, que veremos na sequência do artigo, proferiu três sermões contra as indulgências em 1516 e 1517. A 31 de outubro de 1517, foram pregadas as 95 Teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, com um convite aberto ao debate sobre elas. 

Esse fato é considerado como o início da Reforma Protestante, e, por isso, 17 de outubro, os reformados, vermelhos ou azuis, celebram o Dia da Reforma.
Lutero foi uma das figuras-chave dessa reforma. Ele criou o que é conhecido como as "95 Teses", que criticavam a Igreja Católica. E assim começou uma revolução social que desestabilizou a Europa.
Essas teses condenavam a "avareza e o paganismo" na Igreja, e pediam um debate teológico sobre o que as indulgências significavam.
As 95 Teses foram logo traduzidas para o alemão e amplamente copiadas e impressas. Após um mês se haviam espalhado por toda a Europa.
As 95 Teses de Lutero formaram um manifesto. Ele disse que: a redenção é um presente de Deus, não algo que se pode comprar, que os papas não são autoridades acima da Escritura, que todos os cristãos deveriam ter acesso à Bíblia, não apenas os padres, e que a fé, e não boas obras, salva a pessoa.
E também disse que as pessoas são perdoadas através da graça de Deus, não através das obras que fazem, que os clérigos devem ser pobres, simples e humildes, que a igreja deve ser pura e abrir os seus tesouros para ajudar os pobres, que não há necessidade de santos intermediários, porque todos os cristãos têm acesso direto a Deus através de Jesus.
Assim, os cinco "solas" de Lutero se tornaram fundamentais para o protestantismo: sola scriptura (a Bíblia é a única autoridade divina), sola fide (a salvação se dá por meio da fé), sola gratia (a salvação é gratuita, não é possível ganhar), solus Christus (Jesus Cristo é o único salvador) e soli Deo glória (toda glória pertence a Deus).
As lutas de Lutero com o catolicismo

Após diversos acontecimentos, em junho de 1518 foi aberto um processo por parte da Igreja Romana contra Lutero, a partir da publicação das suas 95 Teses. Alegava-se, com o exame do processo, que ele incorreu em heresia. Depois disso, em agosto de 1518, o processo foi alterado para heresia notória. Finalmente, em junho de 1520 reapareceu a ameaça no escrito "Exsurge Domini" e, em janeiro de 1521, a bula "Decet Romanum Pontificem" excomungou Lutero. Devido a esses acontecimentos, Lutero foi exilado no Castelo de Wartburg, em Eisenach, onde permaneceu por cerca de um ano. Durante esse período de retiro forçado, Lutero trabalhou na sua tradução da Bíblia para o alemão, da qual foi impresso o Novo Testamento, em setembro de 1522.
Enquanto isso, em meio ao clero saxônico, aconteceram renúncias ao voto de castidade, ao mesmo tempo em que outros tantos atacavam os votos monásticos. Entre outras coisas, muitos realizaram a troca das formas de adoração e terminaram com as missas, assim como a retirada das imagens nas igrejas e o fim do celibato. Ao mesmo tempo, Lutero escrevia “a todos os cristãos para que se resguardem da insurreição e rebelião”. Seu casamento com a ex-freira cisterciense Catarina von Bora incentivou o casamento de outros padres e freiras que haviam adotado a Reforma. Com estes e outros atos consumou-se o rompimento definitivo com a Igreja Católica Romana. Em janeiro de 1521 foi realizada a Dieta de Worms, que teve um papel importante na Reforma, pois nela Lutero foi convocado para desmentir as suas teses, no entanto ele defendeu-as e pediu a reforma.
Toda essa rebelião ideológica resultou também em rebeliões armadas, com destaque para a Guerra dos camponeses (1524-1525). Esta guerra foi, de muitas maneiras, uma resposta prática aos discursos incendiários de Lutero e de outros reformadores. Revoltas de camponeses já tinham existido em pequena escala em Flandres (1321-1323), na França (1358), na Inglaterra (1381-1388), durante as guerras hussitas do século XV, e muitas outras até o século XVIII. Mas muitos camponeses julgaram que os ataques verbais de Lutero à Igreja e à hierarquia significava que os reformadores iriam igualmente apoiar um ataque armado à hierarquia social. Porém não foi assim: Lutero condenou a revolta armada.
Em 1530 foi apresentada na Dieta imperial convocada pelo Imperador Carlos V, realizada em abril daquele ano, a Confissão de Augsburgo, escrita por Felipe Melanchton, com o apoio da Liga de Esmalcalda. Os representantes católicos na Dieta resolveram preparar uma refutação ao documento luterano em agosto, a Confutatio Pontifícia (Confutação), que foi lida na Dieta. O Imperador exigiu que os luteranos admitissem que sua Confissão havia sido refutada. A reação luterana surgiu na forma da Apologia da Confissão de Augsburgo, que estava pronta para ser apresentada em setembro do mesmo ano, mas foi rejeitada pelo Imperador. A Apologia foi publicada por Felipe Melanchton no fim de maio de 1531, tornando-se confissão de fé oficial quando foi assinada, juntamente com a Confissão de Augsburgo, em Esmalcalda, em 1537.
Ao mesmo tempo em que ocorria uma reforma em um determinado sentido, grupos protestantes realizaram a chamada Reforma Radical. Queriam uma reforma mais profunda. Foram parte importante dessa reforma radical os Anabatistas, cujas principais características eram a defesa da total separação entre igreja e estado e o "novo batismo" (que em grego é anabaptizo). Enquanto na Alemanha a reforma era liderada por Lutero, na França a Reforma teve como líder João Calvino.
Um reformador francês
João Calvino foi inicialmente um humanista. Nunca foi ordenado sacerdote. Depois do seu afastamento da Igreja católica, este intelectual começou a ser visto como um representante importante do movimento protestante. Vítima das perseguições aos huguenotes na França, fugiu para Genebra em 1533 onde faleceu em 1564. Genebra tornou-se um centro do protestantismo europeu e João Calvino permanece desde então como uma figura central da história da cidade e da Suíça. Calvino publicou as Institutas da Religião Cristã, que são uma importante referência para o sistema de doutrinas adotado pelas Igrejas reformadas.
O protestantismo chegou na França através de teólogos e intelectuais franceses que levaram as ideias reformistas de Lutero e outros líderes protestantes ao país. O protestantismo ganhou popularidade rapidamente, em particular entre a classe intelectual e a burguesia urbana. Mas a resistência da Igreja Católica, que tinha muito poder político e econômico, levou a um conflito agudo conhecido como as Guerras das Religiões.
Além de Calvino, a França produziu grandes pensadores protestantes, como Michel de L'Hospital, que era um diplomata e escritor e escreveu um livro famoso chamado "Le Prince", que discutia como o poder deveria ser usado. Pierre Viret, um teólogo e orador famoso que ajudou a espalhar a doutrina protestante pelo sul da França. Guilhem de Castres, um bispo que se converteu ao protestantismo e tornou-se um líder importante na Renovação francesa.
A guerra das religiões
A Guerra das Religiões na França durou 36 anos, do ano de 1562 até o ano de 1598. Foi uma série de oito conflitos entre facções protestantes e católicas na França que acabou com o Rei Henrique IV, um protestante que se converteu ao catolicismo em nome da paz. Os protestantes na França foram perseguidos durante a guerra, com muitos sendo expulsos do país ou executados. Mas, no final, a guerra resultou em uma certa tolerância religiosa, com os católicos e protestantes tendo que conviver em paz.
Assim, os problemas com os huguenotes tiveram uma solução temporária, quando Henry IV, como vimos um ex-huguenote, emitiu o Édito de Nantes, declarando tolerância religiosa e prometendo um reconhecimento oficial da minoria protestante, mas sob condições muito restritas. O catolicismo se manteve como religião oficial estatal e as fortunas dos protestantes franceses diminuíram e exauriram-se ao longo do século seguinte, chegando ao fim, quando Louis XIV promulgou o Édito de Fontainebleau, que revogou o Édito de Nantes e fez do catolicismo única religião legal na França.
Em 22 de agosto de 1572, um atentado foi realizado contra o almirante de Coligny, protestante que tinha apoiado o projeto da França Antártica, na baía de Guanabara, em terras brasileiras, ao lado de Villegagnon. Quando deixou o Louvre, onde participava do Conselho do rei, foi atacado. Mas não morreu, ficou ferido.
Na noite de 23 a 24 de agosto de 1572, um Conselho Real se reuniu, durante o qual foi decidido assassinar o Almirante de Coligny e os líderes huguenotes. A igreja Saint-Germain-l'Auxerrois tocou o sino como sinal para o início do massacre.
O almirante foi selvagemente morto em sua casa, enquanto outros líderes huguenotes eram massacrados no Louvre e na cidade, surpreendidos à noite sem possibilidade de defesa, "mortos como ovelhas no matadouro", como escreveu Theodore Beze.
Por três dias, o massacre continuou em Paris. A violência foi extrema. Católicos que usavam uma cruz branca em seus chapéus atacavam todos os lares protestantes. As ruas ficaram vermelhas de sangue derramado. O número de vítimas é estimado em quatro mil mortos em Paris. Em 26 de agosto, o rei foi ao parlamento e assumiu a responsabilidade pelo massacre. E o papa elogiou a ação católica.
Oito guerras se sucederam por um período de 36 anos (1562-1598), intercaladas com períodos de paz frágil. Estima-se que três milhões de pessoas morreram durante a guerra, por violência, fome ou doença.
Foi a segunda guerra religiosa mais mortífera da história da Europa, superada apenas pela Guerra dos Trinta Anos, que matou oito milhões de pessoas. A guerra das religiões terminou com o edito de Nantes, 30 de abril de 1598, que estabeleceu uma dualidade confessional. Mas a esta altura, 200 mil huguenotes tinham sido mortos, outros tantos migraram e o restante se refugiou nas montanhas. Calcula-se que no início da guerra havia cerca de 600 mil protestantes na França, numa população francesa de cerca de 10 milhões de pessoas.
A Reforma teve um impacto profundo na França. Ao mesmo tempo em que contribuiu para um sentimento crescente de descontentamento com a Igreja Católica e a monarquia. A Reforma também ajudou a formar a ideia de igualdade e direitos individuais, que seriam ideais essenciais na Revolução Francesa. Por exemplo, a Revolução estabeleceu uma nova constituição que declara os direitos humanos, incluindo liberdade de religião e igualdade diante da lei. Sem a Reforma, a França não seria o país que conhecemos hoje.
Os reformados antes da Reforma
Uma questão se coloca: onde estavam os fieis que não eram católicos, antes dos huguenotes? Os protestantes reformados tiveram diferentes antepassados. O primeiro foi o reformador checo Jan Hus, que se levantou contra as indulgências do catolicismo. Lutero conhecia os escritos de Hus, mas não gostava deles, porque Hus se orgulhava de suas ações.
Até 1520, Lutero pensou que ele poderia ser um hussita, mas constatou que suas críticas à igreja de Roma eram mais profundas que as de Jan Hus.
Depois vieram os valdenses, herdeiros do pensamento de Pierre Valdo. Era um rico comerciante. Por volta de 1170, ele ouviu uma passagem da vida de São Alexis narrada por um trovador. Esse relato o levou ao desejo de seguir o Cristo pobre. Entregou sua propriedade à esposa e seguiu o ideal de pobreza apostólica. Começou a pregar nas ruas de Lyon sem a permissão das autoridades eclesiásticas. Ele e seus seguidores foram expulsos da cidade. Mais tarde, durante o Sínodo de Chanforan (1532), muitos deles aderiram à Reforma.
Segundo historiadores protestantes dos séculos XVI e XVII, os valdenses surgiram com as primeiras comunidades cristãs, antes mesmo de Pierre Valdo. Graças a eles, as igrejas reformadas francesas puderam afirmar sua origem apostólica.
O terceiro grupo foram os albigenses ou cátaros. Os albigenses nos séculos XI e XII se fizeram presentes no sul da França, no Languedoc, na Provença, e se localizaram principalmente nas cidades de Albi, de onde levaram o nome, mas se fizeram presentes também em Béziers, Carcassonne, Toulouse, Montauban, Avignon.
Os albigenses deram a s1i mesmos o nome de cátaros, puros. Viviam uma vida simples, sem ostentação, longe dos vícios, tendo como modelo as primeiras comunidades cristãs. Inicialmente, os protestantes reformados foram hostis a eles. Mas, na década de 1560, os católicos acusaram os protestantes de serem idênticos aos albigenses, e os protestantes adotaram esse ponto de vista por volta de 1562. Para eles, a perseguição aos albigenses tornou possível pensar melhor seu cristianismo protestante. Isso significou uma ligação direta entre albigenses e reformados.
Manchada com o sangue huguenote
O secularismo francês foi construído no século dezenove na reunião presencial entre católicos e republicanos. Esse corpus jurídico garante a liberdade de crer ou não e a separação entre comunidades ou organizações religiosas e o Estado. O catolicismo recebeu vantagens, financiamento público de seus locais de culto e em parte de seus estabelecimentos de ensino, sob certas condições. Mas também passou a enfrentar limitações, em particular de seus esforços evangelísticos e missionários dentro do país.
Isso trouxe crises progressivas entre 1949 e 1954 e entre 1956 e 1965, com afastamento crescente da juventude francesa da Igreja católica. Assim como as consequências eclesiais da crise do maio de 68. Por outro lado, os debates em torno da encíclica Humanae Vitae deram origem à dissidência fundamentalista e à renovação carismática. A crise vocacional foi profunda e prolongada.
Algo acontece de novo
Uma pesquisa em 1995 estimou os protestantes em 1,5% da população, mas em 2009 outra pesquisa avaliou os protestantes franceses em 3 a 4% da população. Um crescimento que o sociólogo Jean-Paul Willaime atribuiu à expansão dos movimentos evangélicos.
O historiador batista Sébastien Fath, no entanto, trabalha com estatísticas diferentes. Numa, calcula cerca de 2,6 milhões de pessoas, sendo 750 mil evangélicos e 1.850 mil luteranos e reformados, incluindo a França ultramarina. Já numa estatística bem mais restrita, avalia a totalidade dos protestantes em 600 mil pessoas, sendo 460 mil evangélicos e 140 mil luteranos e reformados. Esse pequeno grupo seria cerca de 2% da população francesa e pode ser comparado aos 6 a 10% que representam o catolicismo.
Ainda a partir de Sébastien Fath há na França quatro mil locais de culto protestantes, sendo 2.600 evangélicos e 1.400 luteranos ou reformados. E a pergunta que fica é, o massacre dos protestantes franceses ainda está presente na vida da França?

Jorge Pinheiro