A partir de hoje muitos pesquisadores, biógrafos, ensaístas e ex-colegas do grande romancista começarão a se debruçar sobre a sua obra, visando interpretá-la, dimensioná-la e dissecá-la em benefício de todos os que lhe admiram ou virão a admirar no futuro.

O interesse nessa dissecação é particularmente maior, por ter sido Mário Vargas Llosa um homem de duas faces, ou melhor, uma estátua viva da contradição humana.

Nesse aspecto, ele foi um fenômeno particularmente raro: conseguiu ser amado e odiado ao mesmo tempo por um mesmo leitor, não só na América Latina como no resto do mundo.

O caráter contraditório de sua personalidade sem dúvida tem despertado um grande interesse junto àqueles que amam a sua obra, mas odeiam as suas posturas políticas, as quais ele expressava particularmente através de crônicas e artigos jornalísticos países afora. No Brasil, todos se perguntam como alguém que escreveu Conversa na Catedral,  História de Mayta e A guerra do fim do mundo, conseguia assumir uma posição essencialmente de direita na esfera política, às vezes até de extrema-direita, como se, em vez de cultivar e se encantar com o mundo dos sonhadores e contestadores de esquerda, empenhados em combater a tirania, como parecia ser, demonstrasse, na prática, exatamente o contrário, isto é, o que mais lhe encantava eram os sonhos dos ditadores e dos tiranos de se eternizarem. Como aceitar isso? Ou melhor: como compreender isso?

Mário Vargas Llosa não é o primeiro escritor dessa estirpe, embora seja o mais importante de nossa época, não só pela persistência dos seus dois aspectos contraditórios como pelo volume e densidade de sua obra. O também ganhador do Nobel de Literatura de 1920, o escritor norueguês Knut Hamsum, famoso por romances extraordinários como Fome, Pan, Os frutos da terra, Vitória, Um vagabundo toca em surdina e outros, ficou famoso pela inexplicável e inaceitável adesão ao nazismo. Na França ocupada, dois grandes escritores franceses de alto gabarito se tornaram cúmplices dos invasores nazistas ou simplesmente aderiram ao seu antissemitismo radical: Drieu la Rochelle e Ferdinand Céline. Drieu la Rochelle, por seu colaboracionismo, chegou a ser condenado à pena de morte, posteriormente comutada, no que muito pesou a grandiosidade de sua obra literária. Céline, particularmente famoso por seu romance Voyage au bout de la nuit, até hoje reverenciado como uma obra prima, sofreu também penalidades condizentes com os panfletos antissemitas que publicou. São dois exemplos de “romancistas contraditórios” como Vargas Llosa, pois já está consagrado pensar-se que um bom escritor seja, antes de tudo, um homem de consciência. Ou, ao menos, um humanista.

Mas este não deixa de ser um tema complexo: Jorge Luís Borges, a maior cabeça do realismo fantástico na América Latina, nunca simpatizou com a esquerda, embora também não vivesse escrevendo artigos puxando o saco de ditadores. Mas, politicamente, pode ser considerado um homem de direita. Já o grande Erza Pound, o imortal autor de ABC da Literatura, foi muito pior do que isso: este, sim, andou bajulando ditadores, os mais nocivos que a humanidade já teve.

O caso de Mário Vargas Llosa, no entanto, é particularmente surpreendente porque quase toda a sua obra romanesca e não apenas a da sua primeira fase, é lastreada em lutas populares, guerrilhas, resistência a ditadores de plantão e na perpetuação de personagens históricos, como Antônio Conselheiro, o sebastianista de Guerra do fim do mundo e Flora Tristán, a revolucionária radical do século XIX, em sua fantástica reconstrução de época O paraíso na outra esquina, que também conta a história do pintor Paul Gauguin. Quanto à sua obra ensaística, há que se notar que Vargas Llosa foi um dos maiores defensores da cultura e, particularmente, da literatura nos tempos atuais. Chegou a ser radical e intransigente nessa defesa, num tempo em que se sabe que a direita e, enfaticamente, a extrema direita, é completamente avessa à cultura, não passando de um bando de candidatos a censores e destruidores de livros (bastaria citar A verdade das mentiras e A civilização do espetáculo). Para ilustrar, citemos dois pequenos trechos de um de seus ensaios mais recentes, publicado na Revista Piauí em 2009, sob o título de Em defesa do romance:

Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo – um mundo sem literatura teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal.

E ainda:

...uma sociedade sem romances, ou na qual a literatura foi relegada, como certos vícios inconfessáveis, às margens da vida social e convertida mais ou menos num culto sectário, essa sociedade está condenada a se barbarizar no plano espiritual e a por em risco a própria liberdade.

Então, pergunta-se, como se pode aceitar que um escritor de tamanha lucidez seja capaz de apoiar um tipo como Bolsonaro, um dos maiores cafajestes e fascistas que o Brasil já conheceu em sua história, em detrimento de Lula da Silva, cuja defesa da literatura e da cultura em geral tem sido demonstrado ao longo de todos os seus governos? É incompreensível e inaceitável, não fosse execrável.

Mas se ficamos estarrecidos diante da postura de Vargas Llosa em relação ao Brasil, o que dizer do que fez em seu próprio país? Depois de perder a eleição presidencial de 1990, na qual era franco favorito, para o criminoso e fraudador Alberto Fujimore, ditador e assassino de ventas de fogo, cuja época de corrupção e terrorismo foi retratada por Llosa no simbólico Cinco esquinas, veio mais tarde declarar apoio aberto e público à filha do tirano, candidata a Presidente por estar o pai condenado e preso, sabendo ele que, se ela ganhasse, logo libertaria o pai e o colocaria em seu lugar. Tudo isso em eleições mais ou menos recentes!

Há muitas tentativas de se explicar este fenômeno; o difícil é se chegar a um veredito. Alguns articulistas acham que tudo decorreu de sua extrema vaidade e narcisismo, pelo que sentia necessidade de ser diferente e independente de todas as tendências dominantes no mundo da literatura. Não deixa de ser uma resposta a examinar. Afinal, a vaidade do escritor era tão grande que usava o título de Marquês de Vargas Llosa e, já no final da vida, candidatou-se e ganhou a eleição para a Academia de Letras da França! Exatamente: da vetusta academia francesa, e não a da Espanha, onde morava; muito menos a de Arequipa, a sua cidade natal.

Outros encontram uma explicação de sua postura na histórica rixa que teve com Gabriel Garcia Márquez, outro ganhador do Nobel que lhe fazia sombra. Vargas Llosa já tinha se perdido de amores por Fidel, no início da carreira, e continuar defendendo os mesmos princípios de antes seria continuar na sombra de Garcia Marquez, declarado escritor de esquerda, cuja amizade com Fidel e Cuba sempre foi marcante em toda a sua vida. Esta explicação, no entanto, não passaria de uma extensão da anterior: uma explosão de vaidade humana saindo pelos poros.

Muitos anos atrás, publiquei na revista Cultura Sur, de Lima, um artigo intitulado As desventuras da literatura brasileira contemporânea, no qual relembro encontro de Mario Vargas Llosa com Carlos Fuentes, Gabriel Garcia Marques e outros escritores latino-americanos de peso, nos Estados Unidos, no qual se comprometeram, cada um, a escrever uma história sobre seu tirano predileto na América Latina. Dessa ideia nasceram Eu, o Supremo, de Augusto Roa Bastos, O recurso do método, de Alejo Carpentier e O outono do Patriarca, de Gabriel Garcia Marquez. Não se sabe se Vargas Llosa cumpriu à risca o seu papel. Todavia, A festa do bode, a icônica história do ditador Trujillo, já preencheria perfeitamente a lacuna.

Explique quem quiser, mas tais interpretações continuarão atravessadas nas gargantas e cérebros de milhares de pessoas. Muitos continuarão a nomeá-lo de crápula.

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