Transformar o humor numa ameaça à ordem jurídica é, no mínimo, um anacronismo perigoso. E, no máximo, uma tentativa de censura disfarçada de moralismo. Não estamos perante uma luta entre o humor e a decência. Estamos perante um confronto entre liberdade e suscetibilidade.
Os humoristas não estão acima da lei — mas também não devem estar abaixo do que a Constituição garante: a liberdade de expressão. O direito à sátira, à crítica mordaz, à caricatura é um pilar das sociedades abertas. Não se protege apenas o que agrada. Protege-se, sobretudo, o que incomoda.A acusação de que RAP e Joana Marques querem impunidade é uma caricatura do que realmente se passa. Nenhum deles pediu imunidade legal. O que ambos denunciam é algo mais subtil e mais grave: o uso dos tribunais para silenciar o comentário incómodo.
Sempre que o humor aponta o dedo a figuras públicas, gera desconforto. Sempre que o humor revela o ridículo, levanta defensivas. Mas é essa precisamente a função do humor — não entreter os egos, mas desconstruí-los.
Os que hoje se indignam com uma piada sobre cantores populares, são os mesmos que amanhã aplaudirão uma piada sobre políticos. O critério não pode ser seletivo.E não, o humor não “domina” ninguém. Quem domina é quem controla os tribunais, os meios de produção, os canais institucionais.
O humor é a linguagem de quem não tem poder — e por isso incomoda tanto quem o tem.
Chamar a isso “elite urbana” é apenas o novo nome para o velho desconforto com a crítica.A frase “todos somos ridículos” não é uma desculpa — é um convite à humildade. Nenhum de nós está imune ao erro, ao exagero, ao grotesco. O humor lembra-nos disso, e é esse espelho que muitos recusam encarar. O riso não humilha — revela. O riso não mata — cura.
E o que não se pode permitir é que um tribunal decida, com régua e esquadro, o que é “graça legítima” e o que é “insulto condenável”. Ricardo Araújo Pereira, ao defender publicamente Joana Marques, não ameaçou o Estado de direito. Pelo contrário, exerceu o seu. E fez o que se espera de uma sociedade madura: debateu em praça pública uma decisão judicial que considera desproporcional. Isso não é chantagem — é democracia.
É preciso que se diga: a Justiça pode errar. E pode ser questionada. Porque também ela é feita de pessoas, contextos e interpretações. Quando um artista critica uma sentença, não está a desrespeitar a lei — está a exercer o direito fundamental ao contraditório.
O mesmo direito que protege os que se sentem ofendidos.Sim, é legítimo que os Anjos se sintam atingidos. Mas é igualmente legítimo que quem os comentou o tenha feito dentro do espaço de liberdade criativa que a Constituição consagra. O tribunal não é um palco. Mas também não pode ser um púlpito de censura.
O precedente, esse sim, é perigoso. Porque abre a porta a processos contra qualquer forma de expressão crítica. E isso, em nome da honra, pode matar o debate público e instaurar o medo.
Não. O humor não está acima da lei. Mas a lei também não pode estar acima da liberdade.A liberdade de expressão não é um luxo dos humoristas. É um direito de todos nós. Mesmo — e sobretudo — quando faz rir.