A história da humanidade, até aproximadamente duzentos anos atrás, foi marcada pelo senso de comunidade. Nos primórdios, ante os perigos de um mundo selvagem e a escassez de alimentos, a sobrevivência do indivíduo dependia de estar em grupo, tanto para proteger-se quanto para conseguir o que comer.

Na antiguidade clássica, o bem coletivo, pressuposto político, se sobrepunha ao bem individual, que, por sua vez, só existia se houvesse o acordo coletivo. Já na Idade Média, a ideia de transcendência era o que conectava as pessoas e as pessoas a Deus.

Recentemente, com o advento do neoliberalismo e seu imperativo produtivo, essa lógica começou a mudar. Num primeiro momento, assistimos à dissolução de referências históricas que constituíram os trabalhadores coletivos, representados como classe, que passaram à atomização e à categoria de sujeitos performáticos. Ou seja, o trabalhador que antes sustentava-se sob o pacto coletivo de classe, engajava-se política e socialmente, transformou-se em self made man, guiado pela supervalorização do eu e pouco afeitos a questões coletivas.

De acordo com o filósofo francês Gilles Lipovetsky (2004), “desde que nossas sociedades entraram na era do consumo de massa, predominaram os valores individualistas do prazer e da felicidade, da satisfação íntima, não mais a entrega da pessoa a uma causa comum."

Pode-se dizer que, na atualidade, o individualismo, propulsionado pelo neoliberalismo, levou a um esvaziamento de grandes ideologias políticas que, por sua vez, deram lugar a um ressentimento que tem ocasionado o fortalecimento de extremismos. Isso porque, o modo de produção neoliberal, embora tenha como pressuposto produzir desigualdades, alimenta as narrativas meritocráticas de sucesso. Em uma sociedade em que o sujeito precisa afirmar sua identidade a partir do consumo, resta o ressentimento quando surge a percepção que, independente da performance, as oportunidades não são iguais para todos.

O que se percebe, ao longo dos últimos anos, é que o resultado desse movimento vem sendo a aposta, por parte de uma camada considerável da população,  em personalidades públicas que propõem uma quebra na ordem existente, não mais pelas promessas de mudanças que preservem pactos coletivos, mas pela via do radicalismo e da supervalorização do indivíduo e de seu poder agenciador. Tudo isso somado ao viés moral e supremacista - atributo de uma cultura que divide o eu e o outro – em substituição à ética social.  

Nessa esteira, temos figuras como Trump e Bolsonaro, que através de discursos disruptivos e egocentrados vêm capitaneando os ressentidos do sistema, sujeitos que passaram de cidadãos a consumidores e que viram em “outsiders” afinados ao neoliberalismo seus representantes ideais.

Em suma, o que vemos ao longo da história é que o afrouxamento dos laços sociais e a crescente perda da noção de comunidade, ensejados pelo individualismo neoliberal, vem causando a dissolução dos pactos coletivos, essenciais à democracia e à saúde do corpo social. O fortalecimento do extremismo, portanto, é diametralmente proporcional à perda progressiva dos valores comunitários.

Do descaso de Bolsonaro na condução política no período pandêmico  às políticas anti-imigração de Donald Trump, o que temos percebido é que o senso de coletividade que possibilita a coesão social, é também o que nos humaniza e nos possibilita a vida.  Emergência climática, perseguição às maiorias minorizadas, políticas supremacistas, aumento da violência, concentração de grandes fortunas têm em comum a supervalorização individualista em detrimento do bem coletivo.  Portanto, não é mais suficiente lutar contra desigualdades, discursar contra o caos climático e revoltar-se com a conjuntura política, é necessário não ceder aos imperativos neoliberais que nos distancia cada vez mais dos valores comunitários, único garantidor da manutenção do pacto civilizatório.

 

 

Carolina Rodrigues.