Origens e Contexto Histórico do Ileísmo

O termo ileísmo deriva do latim ille, que significa “ele” ou “aquele”, e refere-se à prática de uma pessoa falar sobre si mesma na terceira pessoa, em vez da primeira. Esta estratégia retórica tem raízes profundas na história e na literatura, sendo utilizada por figuras icónicas para transmitir uma impressão de objetividade e autoridade.

Um dos primeiros registos do uso do ileísmo remonta a Júlio César (100 a.C. – 44 a.C.), que, no seu famoso relato Comentarii de Bello Gallico, escreveu sobre si mesmo na terceira pessoa: “César vingou o público”, em vez de “Eu vinguei o público”. Esta escolha linguística visava dar um tom de imparcialidade e distanciamento, tornando a narrativa mais factual e menos subjetiva. Outros líderes e filósofos da antiguidade também recorreram a esta técnica, incluindo Xenofonte, que escreveu Anábase referindo-se a si mesmo como um personagem distante, reforçando a credibilidade dos seus relatos.

Na modernidade, o ileísmo tem sido associado a líderes políticos e figuras públicas que procuram transmitir um ar de autoridade e confiança. Contudo, até recentemente, a prática era vista sobretudo como uma peculiaridade linguística, com conotações de excentricidade ou mesmo narcisismo. No entanto, a ciência cognitiva veio revelar que o ileísmo pode ter benefícios psicológicos profundos, especialmente no que toca ao pensamento sábio e à tomada de decisões.

A Ciência por Trás do Ileísmo: O Paradigma de Grossmann e o “Paradoxo de Salomão”

A investigação contemporânea sobre a sabedoria humana tem sido liderada pelo psicólogo Igor Grossmann, da Universidade de Waterloo, no Canadá. Grossmann propôs que a sabedoria não é apenas uma questão de inteligência, mas sim de competências metacognitivas, como:

Humildade intelectual (reconhecer a limitação do próprio conhecimento);

Consideração de múltiplas perspetivas;

Capacidade de compromisso e resolução de conflitos.

Nos seus estudos, Grossmann identificou um fenómeno interessante, a que chamou “Paradoxo de Salomão”. O nome remete para o Rei Salomão, que, na tradição bíblica, era célebre pela sua sabedoria ao aconselhar os outros, mas falhou em tomar decisões sábias para si próprio. O paradoxo sugere que as pessoas tendem a raciocinar com mais clareza e objetividade sobre os problemas dos outros do que sobre os seus próprios dilemas.

Para testar esta hipótese, Grossmann realizou experiências nas quais pediu a participantes que refletissem sobre problemas pessoais e sobre os problemas de terceiros. Os resultados mostraram que os indivíduos eram significativamente mais sábios e racionais quando pensavam sobre os desafios dos outros. Este viés ocorre porque, ao avaliarmos os nossos próprios problemas, estamos emocionalmente envolvidos, o que pode levar a reações impulsivas ou irracionais.

Foi neste contexto que Grossmann e o psicólogo Ethan Kross, da Universidade de Michigan, exploraram o potencial do ileísmo como ferramenta cognitiva. A hipótese era simples: se falar sobre si mesmo na terceira pessoa aumenta o distanciamento emocional, isso pode ajudar a superar o Paradoxo de Salomão e a tomar decisões mais sábias.

Ileísmo como Ferramenta para a Tomada de Decisão

Os estudos de Grossmann e Kross confirmaram que o uso do ileísmo melhora a qualidade da tomada de decisão. Os participantes que se referiam a si mesmos na terceira pessoa demonstravam:

Maior humildade intelectual;

Maior capacidade de reconhecer perspetivas alternativas;

Maior disposição para compromissos e soluções equilibradas.

Num estudo mais recente, Grossmann, em colaboração com Abigail Sholer e Anna Dorfman, pediu a um grupo de voluntários que mantivesse um diário durante um mês. Metade dos participantes escrevia sobre os seus problemas na primeira pessoa, enquanto a outra metade adotava o ileísmo. Os resultados mostraram que aqueles que usaram a terceira pessoa melhoraram significativamente as suas competências de raciocínio sábio ao longo do tempo.

O ileísmo revelou-se também útil na gestão emocional. Os participantes que escreviam sobre os seus desafios usando a terceira pessoa relataram menos stress e mais emoções positivas depois de eventos difíceis. A teoria por detrás desse efeito sugere que, ao criar um afastamento linguístico, o ileísmo ajuda a reduzir a reatividade emocional e a promover um pensamento mais racional e estratégico.

O Ileísmo no Mundo Atual: Aplicações e Benefícios

O uso do ileísmo pode ser uma ferramenta poderosa em várias áreas:

1. Tomada de decisão pessoal e profissional

A prática pode ajudar líderes, gestores e empreendedores a avaliar situações com mais objetividade e a evitar decisões impulsivas.

2. Regulação emocional

Ao lidar com conflitos interpessoais ou desafios emocionais, o uso da terceira pessoa permite reduzir a intensidade das emoções e promover uma resposta mais equilibrada.

3. Desenvolvimento da autoconfiança e resiliência

Pessoas que praticam ileísmo podem beneficiar de uma maior sensação de controlo sobre os seus pensamentos, evitando ruminações excessivas.

4. Coaching e terapia

Muitos terapeutas e coaches podem encorajar os clientes a praticar ileísmo para ganhar perspetiva sobre os seus problemas e encontrar soluções mais eficazes.

5. Tomada de decisões estratégicas em política e comunicação

Muitos políticos e comunicadores utilizam o ileísmo para criar um tom de autoridade e distanciamento emocional ao abordar temas delicados.

Conclusão: Um Recurso Antigo com Validade Científica

O ileísmo, uma prática com raízes na Antiguidade, revelou-se uma ferramenta cognitiva poderosa que a ciência moderna começa agora a compreender melhor. Estudos demonstram que referir-se a si mesmo na terceira pessoa pode melhorar a tomada de decisão, reduzir o impacto das emoções negativas e aumentar a sabedoria no raciocínio.

Num mundo onde as emoções frequentemente interferem na clareza do pensamento, o ileísmo surge como um “truque mental” simples, mas eficaz, permitindo-nos tomar decisões mais racionais e equilibradas. Como dizia Albert Einstein, “não podemos resolver os nossos problemas com o mesmo nível de pensamento que usámos para os criar”. Talvez mudar a forma como falamos connosco mesmos seja o primeiro passo para um pensamento mais sábio.

 A prática do ileísmo, outrora utilizada por figuras históricas como Júlio César(100 a.C.–44 a.C.), tem sido objeto de estudo na psicologia contemporânea, com pesquisas conduzidas por Igor Grossmann (Universidade de Waterloo) e Ethan Kross (Universidade de Michigan) demonstrando os seus benefícios para a tomada de decisões e regulação emocional (Grossmann et al., 2017; Kross et al., 2014). Estudos indicam que referir-se a si mesmo na terceira pessoa promove um distanciamento cognitivo, permitindo maior humildade intelectual, consideração de múltiplas perspetivas e melhor regulação emocional (Grossmann, Dorfman, Sholer, & Oakes, 2020). Assim, o ileísmo emerge como uma ferramenta prática e cientificamente fundamentada para desenvolver um pensamento mais sábio e estratégico, com aplicações na vida pessoal, profissional e social.

Referências

Grossmann, I., Kross, E. (2014). Exploring Solomon’s Paradox: Self-Distancing Eliminates the Self-Other Asymmetry in Wise Reasoning About Close Relationships. Psychological Science, 25(8), 1571–1580. DOI: 10.1177/0956797614535400

Grossmann, I., Dorfman, A., Sholer, A., & Oakes, H. (2020). Training for Wisdom: The Distanced-Self Reflection Intervention Enhances Wise Reasoning. Journal of Experimental Psychology: General, 149(3), 529–540. DOI: 10.1037/xge0000667

Kross, E., Bruehlman-Senecal, E., Park, J., Burson, A., Dougherty, A., Shablack, H., Ayduk, O., & Mischel, W. (2014). Self-Talk as a Regulatory Mechanism: How You Do It Matters. Journal of Personality and Social Psychology, 106(2), 304–324. DOI: 10.1037/a0035173