ALGUNS DADOS SOBRE COMO SE FORMA UM MILITANTE DE ESQUERDA

 

Boa tarde!

 

Há pessoas presentes que me conhecem, outras não.

 

Uma explicação muito breve para eu estar aqui na mesa e vos ir falar. São três, as razões fundamentais:

 

1) O tema deste Colóquio.

 É-me particularmente caro desde há alguns anos, como alguns dos companheiros que  vejo na sala sabem, e tornou-se mais premente com o “apagão” que foi feito, aquando do 50 anos do assassinato de Ribeiro Santos, da acção de dura luta que o MA de Ciências travou em 1972 e, em especial, o papel de destaque de Pedro Ferraz de Abreu (PFA) na condução dessa luta.

Noutras ocasiões a “história” do esquecimento tem-se repetido - é o caso, por exemplo, de uma exposição sobre o ME, realizada o ano passado aqui, nesta casa, em que as lutas dos estudantes de Ciências de Lisboa foram pura e simplesmente omitidas.

Há que repor, pois, a verdade dos factos.

2) A relevância que teve, no panorama da acção estudantil desenvolvida na transição da década de sessenta para a seguinte, na Academia de Lisboa (mas não só), a orientação associativa “Por uma Universidade Popular”, também designada “Por Um Ensino ao Serviço do Povo”, ou ainda, mais vulgarmente conhecida por “POPs”.

 O estudo, a discussão sobre o assunto em que tenho participado com camaradas, levam-me a dizer que a teoria e a prática de então são ricas em ensinamentos que têm grande actualidade, como espero conseguir mostrar nesta intervenção, mesmo que só através de alguns afloramentos, sem grande profundidade - tal exigiria um debate noutras circunstâncias e muito mais demorado.

Mas ainda assim haverá quem hoje vos irá falar brevemente (e na qualidade de um dos autores) sobre o cerne da questão - quem, quando, como, onde, o quê e por quê surgiu a orientação, isto é, que organização política estava por detrás dela (isto é, o CM-LP/ PCP(m-l) e a sua organização estudantil UEC(m-l)).

3)  Finalmente, passados 50 anos é bom ter a oportunidade de dizer alto e bom som que é um orgulho ter feito parte (mesmo que qual gota de água) da corrente impetuosa do rio que veio desaguar no estuário largo do 25 de Abril, que impôs a derrota do regime fascista/ colonialista de Salazar/ Caetano. 

Essa alegria ninguém me tira - se bem que os tempos que se aproximam sejam muito, muito preocupantes, em Portugal e no Mundo inteiro. 

 

A comunicação que vou fazer é, então, a de alguém que sendo um jovem de 20 anos, oriundo de uma família pequeno-burguesa de tradição republicana e anti-salazarista,  primeiro, conheceu a orientação associativa “Por uma Universidade Popular” (título usado no Programa de Candidatura nas eleições da AEFCL de 70/71, Novembro/70) e, depois, viveu por dentro, praticou-a, enquanto colaborador associativo, nas diversas vicissitudes pelas quais passaram os estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa, no início da década de 70. O seu envolvimento na luta estudantil levou-o, numa fase posterior, a tornar-se um militante político (no caso, no PCP(m-l)), sendo que a referência a tal será muito breve, por limitações de tempo. Terminarei com algumas reflexões feitas ultimamente.

 Seria interessante esboçar o panorama político-social de Portugal daqueles tempos ditos (erroneamente) de “primavera marcelista”: a continuação da opressão e exploração do Povo, da Guerra Colonial, a repressão sobre as liberdades, o atraso socio-económico de décadas relativamente à Europa, a vaga de emigração… o elenco é conhecido e não vou desenvolvê-lo. Da situação internacional, para além do “orgulhosamente sós” salazarento (“sós”, sim, de facto, mas “orgulhosamente”... antes pelo contrário, como era evidente quando se ia “lá fora”), há que destacar, pela especial repercussão que teve na Juventude, os ecos do Maio/68.

 Em particular, acerca do que era a juventude universitária naquele tempo, interessa realçar que se a esmagadora maioria tinha origem social média-elevada - portanto, pertencia à parte privilegiada da sociedade - tinha também a disponibilidade própria daquela idade para conhecer o mundo e revoltar-se contra as injustiças sociais gritantes que se viviam em Portugal. Facto que ficou bem patente quando das grandes cheias de Novembro de 1967 na região de Lisboa, que atingiu principalmente a população mais pobre dos subúrbios,e que gerou um grande movimento de solidariedade na comunidade universitária, que agiu em brigadas organizadas nas AAEE. 

 Entrei em Outubro de 1968 para o IST, a tempo de viver a crise que levou ao encerramento temporário do Instituto em Dezembro. Passei a acompanhar, enquanto estudante anónimo mas participativo na actividade estudantil, a fervilhante vida da AE do Técnico, que era nessa altura um ponto de apoio importante (por exemplo, na área da reprografia) da globalidade do Movimento Associativo na Academia de Lisboa.[1]

 Já em Março de 1970, salvo erro, na sequência de uma reunião realizada na AEIST a propósito da proibição do ciclo de filmes “O que é o cinema de “esquerda”?”, promovido pelo CCUL, o cinéfilo que na altura eu era  transforma-se em cineclubista - começando por ser colaborador, passando a dirigente em 70/71. O Cine-Clube era um organismo autónomo do MA (tal como o CDUL e a Livrelco) e nessa qualidade tinha assento na RIA, com o estatuto de observador (podendo intervir mas não votar).

 É dessa posição (que diria privilegiada) que acompanho a intensa disputa ideológica, com expressão teórica e praxis, entre tendências político-associativas no movimento estudantil de Lisboa - das outras academias (Coimbra e Porto) só tinha alguns ecos esporádicos. Através da leitura de variada documentação das AAEE, de ouvir as intervenções em plenários estudantis, assim como nas RIAs, fui-me apercebendo o que caracterizava a orientação dos POPs no confronto com as restantes que tinham expressão na luta estudantil lisboeta.

 E cumulativamente, com o passar do tempo, foi ficando claro para mim a filiação político-partidária de cada uma das tendências: a “reformista” (direitista, especializada em protestos e abaixo-assinados) ligada ao PCP, a radical EDE (Esquerda Democrática Estudantil) ligada ao MRPP - fundado em Setembro/70 e em que eram os próprios, com frequência, a se assumirem enquanto tal -, a “vanguarda esclarecida” (que rapidamente ficava isolada e sem apoio de massas) ligada aos CCRML e a “POP”, ligada à UECM-L e ao CM-LP.

Em vez de caracterizar as referidas tendências, vou centrar-me na última, com uma definição sintética: a orientação exprimia a luta que se impunha travar por um objectivo a longo prazo -  a Universidade Popular - que fosse acessível a todos os estratos sociais e em que os conteúdos e processos formassem pessoas que contribuíssem para o desenvolvimento de toda a sociedade, e que esta deveria ser a perspectiva para todo o trabalho da AE.[2] Tentarei ainda identificar traços distintivos da orientação.

 Com a minha transição para a Faculdade de Ciências - Curso de Engenharia, no ano lectivo de 1970/71, na qualidade de simples aluno interessado na vida quotidiana da Escola e participante nas respectivas lutas estudantis - portanto, na altura, ainda não era colaborador da AEFCL, pois a minha actividade “militante” era enquanto dirigente cineclubista - pude chegar à formulação de um primeiro quadro caracterizador da orientação “Por um Ensino ao Serviço do Povo”, com base em 4 parâmetros fundamentais:

 

P1 - consistência/ coerência da linha política - dimensão que se tornava relevante logo no 1º contacto com a orientação, nomeadamente em dois aspectos significativos

  1. a) no intenso e tenaz combate ideológico na procura de um rumo certo, justo e firme - que muitas vezes foi confundido com sectarismo, talvez, pelo menos algumas vezes, por falha argumentativa dos oponentes, outras usado como simples “chavão” muito em voga na época; (exemplo: intervenções de PFA em RIA e plenários da academia lisboeta);
  2. b) no cuidado de realizar a ligação teoria-prática - patente em cada acção de luta e como pode ser atestado nos improp; (exemplo: a condução do processo do legionário apanhado a espiar na Faculdade, que se poderia ter transformado num “caso Ribeiro Santos”, o que não aconteceu provavelmente por a Direcção associativa em Ciências ter tido um comportamento diferente daquele que teve a de Económicas, onde RS foi assassinado);

==» e assim se travava, com a arma da palavra, a luta contra o reformismo e o radicalismo, nas suas diferentes formas.

 

P2 - assumpção do trabalho sindical próprio de uma AE - dimensão assumida sem pejo, pois o trabalho sindical numa organização de massas, como uma AE no tempo do regime fascista/ colonialista, era revolucionário (e não reformista e/ou recuado e/ou limitado, como alguns entendiam) se

  1. a) não fosse definido como objectivo último da acção sindical o satisfazer as reivindicações pedagógicas justas dos estudantes (que, diga-se de passagem, eram muitas, pois o estado do ensino na Faculdade era deplorável) - e, de facto, a actividade sindical da AEFCL era enquadrada na luta por um outro tipo de universidade, a Universidade Popular, objectivo claramente extra-sindical, que questionava a actual sociedade e o regime vigente;
  2. b) as formas de luta desenvolvidas servissem para uma aprendizagem dos estudantes e a um reforço da AE numa via progressista: i) aumentassem a consciência da força dos estudantes bem unidos em torno de uma causa justa, ii) levassem quer ao alargamento da influência da Associação entre a generalidade dos estudantes, quer ao crescimento do número de colaboradores envolvidos na actividade associativa, fruto da proficiência do trabalho desenvolvido e iii) ainda servissem para revelar a natureza do regime - o que invariavelmente acontecia, dado que as práticas autónomas, desafiadoras do status quo, muito participativas e democráticas dos estudantes entravam facilmente em confronto com o carácter autoritário, antidemocrático e repressivo das autoridades académicas - quando não das próprias autoridades governamentais e até policiais - treinadas na obediência hierárquica e habituadas a não contestação do seu próprio poder; assim, mais do que o objectivo de cada luta, contava o processo seguido.

A boa condução do trabalho sindical por esta via serviria então, num momento posterior, para desencadear acções de luta por objectivos mais avançados e por adoptar  formas de luta mais radicais. E isto é, indubitavelmente, um processo revolucionário. A história do MA em Ciências nos anos de 1970 a 1974, que pode ser atestada na sequência dos improp, mostra esta evolução.   

==» posição esta que se opunha quer ao reformismo, quer ao radicalismo.

 

P3 - distinção clara entre formas de luta legais e ilegais - uma AE, estrutura legal, actua no plano legal… a luta ilegal cabe a outro tipo de organizações, sob pena de se sacrificar a via de luta legal, que tem as suas potencialidades próprias; a UEC(m-l) ou o CM-LP não se confundiam com a AEFCL (exemplo, entre muitos outros: sempre se procurou ocultar onde era impresso, e quem o fazia, a publicação “Os Povos das Colónias Vencerão”, órgão dos Comités de Luta Anticoloniais e Anti-Imperialistas (CLACs)...).   

       ==» e assim havia clara demarcação em particular do MRPP.

 

P4 - percepção de um clima de bem estar, de salutar convivência entre o “pessoal” de Ciências - que pelo inédito da situação até se prestava a provocar inveja em militantes de orientações rivais (exemplo: duas pitorescas passagens do livro “Conquistadores de Almas”, de Pinto de Sá, onde, no meio de várias diatribes, expressões sem nexo e contradições, diz candidamente a respeito dos “pops”: “Estes novos activistas eram muitas vezes meninos bem da linha de Cascais [não sei onde o autor foi buscar esta ideia estapafúrdia], pedantes e bem vestidos, com raparigas lindas e diáfanas. O termo “pop” vinha-lhes deste estatuto social mas também da abreviatura da sua sigla, “Por um ensino POPular”. ” (p. 93). Porém, quatro parágrafos antes dizia de forma delirante, a propósito da expansão que essa orientação ganhava então na universidade “(...) juntando-se à Faculdade de Ciências onde Pedro Ferraz de Abreu, o “Ferrabrás”, já há muito dominava com um forte e agressivo grupo de associativos. O grupo de “Ferrabrás” era, aliás, particularmente temido, porque juntava a inflexibilidade política a um estilo rocker de casacos de cabedal e botas de cano alto que constava esconderem facas de ponta e mola.” (p. 92). E esta, hem!?  

       ==» o ambiente de são convívio entre rapazes e raparigas que se vivia em Ciências naqueles dias era efectivamente uma dimensão nova na Universidade, particularmente assinalável se tivermos em conta como era a sociedade de então - obscurantista, altamente discriminatória entre sexos, profundamente repressiva.

 

Mas esta visão “de fora”, podemos assim dizer, sofre um aprofundamento e precisão quando me torno actor - agora já na qualidade de colaborador da AEFCL, no âmbito do curso de Engenharia, em 1971, em data que não consigo precisar.[3]

 

Concretizando, as 4 dimensões anteriores foram confirmadas, e desenvolvidas, e posso acrescentar mais outras 2.

 

Antes, convirá fazer uma caracterização sintética de certas condições objectivas específicas da Faculdade de Ciências no final dos anos 60 e início dos 70, que ajudam a compreender o que se vai dizer a seguir:

-    a recente experiência de ter tido uma Comissão Administrativa (fascistoide) à frente da AE, que obrigou o movimento associativo a procurar formas alternativas de organização até recuperar a sua autonomia democrática através de eleições - o que aconteceu no ano lectivo de 68/69;

-    o tratar-se de uma Faculdade de população bastante mista - o que não era a regra noutras;

-    o ter uma grande panóplia de cursos, com realidades pedagógicas algo diferentes;

-    o estar situada no centro da cidade.

 

Retomando o quadro que venho organizando (outros fariam de modo diferente certamente) de parâmetros caracterizadores da orientação “Por um Ensino ao Serviço do Povo”:

 

P1 - consistência/ coerência da linha política - tomando de volta a questão do sectarismo, alguns exemplos que o desmentem:

-    entre os colaboradores de Ciências havia várias tendências;

-    na Direcção da AE precedente à da “Por uma Universidade Popular” contava-se luxemburguistas, pcps, edes, uec(m-l)s, católicos progressistas, etc;

-    Ribeiro Santos e José Lamego eram do MRPP e tal não impediu o empenhamento da orientação, e de PFA, em particular, que além de redigir o Comunicado à População, levou por diante a luta, organizando a manifestação de protesto (e inclusive, definindo a sua palavra de ordem “Governo do Povo, SIM! Governo assassino, NÂO!”, sincopada para acompanhar a marcha) aquando do funeral do primeiro;[4]

-    o nascimento dos CLACs - que depois, por acção do MRPP, se dividiram;

-    no plano teórico ainda, por exemplo, há o texto, sem data, “AAEE: o impasse federativo”, de autoria de PFA, onde se fundamenta a necessidade de “(..:) acordo tático imediato [face à luta contra “o Sistema Social instituído, com seu representante e defensor, o Governo”] e dinamização incansável da luta ideológica interna, que se firmará na determinação de uma estratégia estudantil, que é difícil mas indubitavelmente possível de estabelecer  (...)” (sublinhado do autor); isto é, unidade na acção contra o inimigo externo comum, mas sem prejuízo da busca pelo rumo certo, através da luta ideológica.

==» foi a consistência/ coerência da linha de orientação que levou ao seu alargamento a outras Escolas, a ponto de se tornar dominante ao nível da RIA de Lisboa; também teve expressão na Academia do Porto.

 

P2 - assumpção do trabalho sindical próprio de uma AE - importa destacar que o sucesso da actividade sindical da AE, desenvolvida nos termos do exposto no P2 anterior, pode ser medido pelo facto de, em finais de Maio de 1971, se ter realizado uma RGA que decretou boicote aos exames com cerca de 1000 estudantes - quando, em 69/70, as RGA conseguiam atingir algumas dezenas de alunos - como forma de luta contra a acção da polícia que encerrou as instalações da AE, roubou o aparelho de reprografia e cercou a Faculdade, enquanto a Direcção era perseguida pela Pide. Não foram pois reivindicações pedagógicas que levaram a esta tomada de posição dos estudantes: apesar do Conselho de Escola, em articulação com a polícia, ter entretanto encerrado a Faculdade, obrigando os estudantes a reunir noutras Escolas, com as Comissões de Curso a assegurar a sua mobilização, os estudantes só levantaram o boicote em finais de Junho, quase um mês depois.

 

P3 - distinção clara entre formas de luta legais e ilegais - era uma questão bastante debatida no seio dos colaboradores, o jogo” da legalidade, ilegalidade e até da semi-legalidade e da  alegalidade; era tema abordado, por exemplo, no “Circular” (vd. nº 3, 3ª edição, de 03/07/72 e ainda nº 23, de Fev/73).

 

P4 - percepção de um clima de bem estar, de salutar convivência entre o “pessoal” de Ciências - já enquanto colaborador da AE de Ciências participei em muitos alegres convívios, com frequência mistos de rapazes e raparigas, almoçaradas (idas em grupo a restaurantes, cantinas escolares - por exemplo, a Agronomia), jogatinas de matrecos e futeboladas (estas no Estádio Universitário?), idas à praia (da Raínha, na Costa da Caparica, por costume), pic-nics com cantorias (por exemplo, na Luneta dos Quarteis, em Monsanto), “invasões” das casas deste(a) e daquele(a), noitadas na Secção de Folhas da AE - a trabalhar, mas também a beber e petiscar -, passeatas (mais próximas umas, como à Ericeira, mais longe outras - Fráguas, nos arredores de Viseu)... momentos forjados em boas práticas lúdicas, num espírito de companheirismo que depois se traduzia em solidariedade combativa; e que também atraía estudantes de outras escolas que partilhavam a nossa orientação; tudo memórias que me são gratas e que recordo com saudade; muitos destes factos estão aliás testemunhados em inúmeras fotografias; que recentes acontecimentos estejam ao arrepio do clima vivido nesses tempos não os invalidam de modo algum.

 

P5 - formação de quadros - era uma importante área de acção, atendendo até que a grande maioria de colaboradores chegava à AE com muito fraca (ou nula) politização ou sequer prática associativa, muito menos de carácter sindical; assim, era preocupação inicial, ao mesmo tempo que se criavam condições para a aprendizagem através da prática, fornecer instrumentos de estudo mais teórico-prático, função que era fundamentalmente exercida pelo “Circular”, o “Boletim interno dos colaboradores da AEFCL”, de que terão sido publicados 27 números, entre 1970 e 1973.

 

P6 - comissões de Curso - esta dimensão constituiu a grande novidade com que me deparei quando me tornei colaborador da AEFCL; o poder de decisão entre duas RGAs – órgão máximo dos estudantes da Faculdade, onde se debatiam, às vezes com grande vivacidade, as propostas para a acção - residia, não na Direcção, mas sim nas Comissões de Curso (CC); tanto quanto eu sabia, tal não acontecia em mais nenhuma Escola; convém assinalar que em Ciências havia vários Cursos (Matemática, Física, Química, Biologia, Geologia-Geografia e Engenharia), cada uma com a sua Comissão, a qual dirigia as reuniões de Curso; outro órgão relevante era a Reunião Geral de Colaboradores (RGC); havia assim uma estrutura de poder muito descentralizada (“todo o poder aos cursos”, ouvia-se), que tornada operacional - a seguir a cada plenário, cada Curso reunia no seu canto para ver como concretizar, ao nível do seu Curso, as propostas que tinham sido ali aprovadas - era de grande eficácia e foi possivelmente o esteio que aguentou o MA de Ciências quando a repressão se abateu mais intensamente sobre a Direcção e alguns colaboradores (principalmente a partir de Outubro/72). 

 

P7 - imprensa estudantil - sempre encarada como peça fundamental ao serviço da luta estudantil no âmbito da AE (vd. improp nº 1 e nº 2, ambos de Janeiro de 70), a aquisição de um aparelho de reprografia bem apetrechado tornou a AEFCL a segunda Associação em Lisboa com maior e melhor capacidade nesta área (a seguir à AEIST); a autonomia de impressão que daí resultou permitiu multiplicar a produção de materiais, como os improp de Curso, para além do improp da Direcção, dos Suplementos improp, o total de publicações com o nome de improp ultrapassa a centena; outras publicações há, como o já mencionado “Circular” ou o “ELO” (de cariz cultural, com pelo menos dois números dedicados à questão colonial); complementarmente, fazia-se a afixação de cartazes por toda a Faculdade (algumas vezes de forma muito criativa, como os cartazes suspensos junto ao tecto dos corredores, com o recurso a balões de hélio), conseguindo assim uma boa fluidez na passagem de informação sobre a vida quotidiana na Faculdade e as suas lutas.  

 

P8 - “lutas avançadas” e Guerra Colonial - além da luta já referida atrás (de Maio-Junho/71), podemos assinalar a luta travada na sequência do assassinato de Ribeiro Santos pela Pide, em Outubro/72 e a manif efectuada no 1º aniversário da sua morte, em Outubro/73, como “lutas avançadas” (e conduzidas pela estrutura clandestina do interior do PCP(m-l)/ UEC(m-l)) que envolveu muitos “pops”;[5] refira-se ainda que alguns destes estudantes, na qualidade de pessoas politicamente conscientes do valor da causa anti–imperialista e da luta contra a Guerra Colonial, desenvolviam acções clandestinas, do tipo produção de publicações anti-coloniais, distribuição de panfletos e boletins (como os dos CLACs), realização de pichagens, participação em manifestações. 

 

P9 - comunicados à População - era uma actividade com boa repercussão, dada a situação geográfica da Faculdade - numa zona quase central da cidade de Lisboa, na altura também muito movimentada -, a que se recorria quando, por exemplo, se pretendia informar a população da prisão de estudantes, muitas vezes de outras Escolas e Academias - dimensão de solidariedade estudantil que é relevante assinalar; havia sempre uma certa dose de risco em se ser preso, e por isso eram acções bem preparadas, de execução rápida e que invariavelmente surtiam o efeito pretendido - o romper, mesmo que muito limitadamente, a censura informativa imposta pelo regime à população.

 

 

Fui durante este período um colaborador associativo activo, que fez uma aprendizagem intensa sobre processos de luta (ainda que estudantis) mas não organizado politicamente.

 

Como já se disse, os “pops” estiveram desde a primeira ordem profundamente envolvidos na luta que deu corpo à revolta pelo assassinato de Ribeiro Santos pela Pide num meeting em Económicas a 10 de Outubro/72. Na sequência, três dirigentes são presos (Glória, Aurélio e Olga) e um só não o é porque passa à clandestinidade - PFA.

 

Por sua vez, as autoridades académicas de Ciências desferem uma vaga repressiva sobre os estudantes que estavam em luta com greve às aulas - greve que os estudantes de Ciências foram os últimos, na Academia de Lisboa, a levantar  - vaga essa que se concretizou em dezenas de suspensões e processos disciplinares, 4 expulsões (3 dirigentes). E ainda, na sequência do “mau comportamento escolar”, 7 incorporações compulsivas na tropa, sendo eu um deles.

 

Dei o “salto” para França (Paris) - integrado num grupo de 5 e com o apoio da organização política clandestina que estava por detrás dos “pops” - tendo aí chegamos a 30 ou 31 de Janeiro/73.[6] Ao mesmo tempo que procuramos regularizar a situação (como refugiados políticos), no meu caso pessoal começo a trabalhar no jornal “O Salto”. Sou recrutado para o PCP(m-l) em Maio. Mais tarde acumularei a redacção do jornal com a da agência noticiosa “Novaport”.

 

O 25 de Abril de 1974 surge em plena crise de cisão no PCP(m-l) no exterior. Estou contra o “Vilar”. Venho de avião, em 29 de Abril, com outro camarada, sendo portador de uma mensagem de “Ortigão” e “Beça” para “Mendes”. Através do Varela faço chegar ao PFA, com quem me encontro a 30 de Abril, tal missiva. Participo na estrondosa e galvanizante (inesquecível!) Manifestação do 1º de Maio de 1974, debaixo de bandeiras vermelhas com camaradas “pops”.

 

Depois a história, muito atribulada, continua. Para já fico-me por aqui.

 

 

A terminar esta intervenção alguns rápidos apontamentos/ reflexões, em jeito de conclusões

 

  • Foi a justeza da orientação “Por um Ensino ao Serviço do Povo” que levou ao reforço da AE, o que veio permitir resistir à tentativa, com a perseguição à Direcção, de decapitação do MA de Ciências. E foi também essa justeza que fez os estudantes crescerem enquanto cidadãos activos e progressistas - à época, a terminologia era outra: “homens de formação integral” (que faz eco da “cultura integral do indivíduo” de Bento de Jesus Caraça, professor de Matemática em Económicas e militante do PCP nos anos 30/40).
  • Ficou assim comprovada, no meu entender, a importância da luta ideológica, contrariamente ao que é por aí tão propalado.
  • A experiência rica do “trabalho de massas” de então merece ser estudada por quem hoje tem preocupações de luta sindical e política, pois ouso afirmar que teria aplicação útil actualmente.
  • Tal como as questões organizativas que promovam formas participativas mais amplas e profundas dos cidadãos na coisa pública.
  • Também a questão comunicacional, que a “esquerda”, ao contrário da “direita”, tem em grande parte menosprezado .
  • Facto de consequências terríveis, que já hoje se fazem sentir: o abandono da Juventude à sua sorte - provavelmente por faltarem ideias à “esquerda” (a construção de uma teoria científica) que dê a esperança aos jovens de que vale a pena lutar pela conquista de um mundo melhor.
  • Um apelo final aos historiadores: dediquem atenção ao tema deste Colóquio. Há vasta documentação à vossa espera - e há ainda, embora a lei do tempo a vá inexoravelmente diminuindo, a possibilidade de recolher testemunhos de actores que vivenciaram os acontecimentos.

 Vasco Costa

 

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2024

 

[1] Da AEIST da época recordo também outros factores materiais relevantes para além do soberbo aparelho tipográfico - o melhor do MA em Lisboa:

  • Os Jornais de parede, grande fonte alternativa de informação no campo da Guerra Colonial, das lutas sindicais e do Movimento Operário (MO), das lutas do Movimento Estudantil (ME) a nível global, inclusive de lutas estudantis e de trabalhadores a nível internacional;
  • a importância da Cabine Sonora da AEIST;
  • o poderio económico da AEIST, em grande parte resultante da actividade tipo “agência de viagens” que detinha - para além da Secção de Folhas.

[2] Vide “Programa de Trabalho da Associação 70/71 - Por uma Universidade Popular”, Lista candidata proposta pelos colaboradores da AEFCL, Lisboa, 26 de Novembro 1970 - AEFCL

[3] Mas de que me recordo qual foi a primeira tarefa: redacção de um Comunicado aos estudantes, que fiz em conjunto com Miguel Miranda, numa tarde, na esplanada que ainda hoje existe no Parque Eduardo VII, perto do Pavilhão dos Desportos (actual Pavilhão Carlos Lopes).

[4] Ainda em relação a José Lamego, ferido a necessitar de tratamento, PFA (envolvendo inusitadamente o seu pai, médico com responsabilidades no Hospital Militar), tentou obstar a que fosse preso.

[5] Nesta altura, na perspectiva de “Vilar” (no PCP(m-l) no exterior) vivia-se em Portugal um período de refluxo do ME, pelo que aquele tipo de acções eram erradas.

[6] Antes, na qualidade de refractários, assinámos um Manifesto, a ser distribuído antes do mais aos estudantes, denunciando a Guerra Colonial como um guerra injusta que o fascismo-colonialismo português (que não o Povo de Portugal) travava contra os Povos das Colónias.

 

Foto de destaque: IA;   imagem criada, apresentando uma cena simples, com um orador entusiasmado a falar para uma audiência atenta num ambiente acolhedor e simples.