Na obra “25 de Novembro, o depois” (2023), Ribeiro Cardoso inscreveu para memória futura aquilo que hoje muitos não sabem, e outros nem sequer querem recordar.

Refiro-me às centenas de prisões políticas arbitrárias e às perseguições que os ditos “vencedores” de Novembro infringiram aos seus camaradas, “militares sérios e honrados, que fizeram e estiveram empenhados com o 25 de Abril”, como escreveu Ribeiro Cardoso.

Neste livro, encontramos testemunhos pungentes de vidas destroçadas e das humilhações infringidas a Capitães de Abril, que contrariam a memória colectiva dominante.

Histórias de vida de militares que viram as suas casas devassadas, e que delas foram vilmente arrastados a altas horas da noite.
Oficiais do Exército, da Marinha e da Força Aérea detidos em estabelecimentos prisionais, sem culpa formada, obrigados a partilharem as celas com presos de delito comum; em Caxias, Custóias, etc. Feridos na sua honra, alguns houve que nunca despiram a farda, para manterem a dignidade que lhes foi violentamente roubada. Na sociedade civil a purga alastrou-se aos profissionais da comunicação social, injustamente saneados por razões político-partidárias, que Ribeiro Cardoso tinha revelado anteriormente no livro O 25 de Novembro e os Media Estatizados, 2017. Escreveu então que “O 25 de Novembro de 1975 ainda tinha muito para e por contar, pois o que ficou na nossa memória
colectivapouco tem a ver com o que se passou na realidade”. Nesta obra, denunciou “a execução de uma estratégia muito antes gizada por sectores político-militares”, que conduziu ao saneamento de 152 trabalhadores da comunicação social estatizada (RTP, Emissora Nacional, Rádio Clube Português, “Diário de Notícias”, “Século”, “Jornal do Comércio” e ANOP). Estes profissionais foram suspensos sem culpa formada e sem processo disciplinar (tal como os militares caluniados de “golpistas”), através de listas “Ad-hoc” baseadas em ficcionados motivos político-ideológicos. Impedidos de entrarem nos seus locais de trabalho e sem salário, homens e mulheres recorreram aos Tribunais do Trabalho, da Relação e ao Supremo, e em todos venceram os processos sem apelo nem agravo. Ribeiro Cardoso consultou cerca de 60 processos judiciais, deu voz a dezenas de trabalhadores injustiçados para salientar que neste processo macabro “muitas carreiras profissionais foram arruinadas, e dezenas de vidas pessoais e familiares foram destruídas”. Nos dois últimos capítulos deixou-nos ainda uma nova versão documentada dos casos do jornal “República” e da Rádio Renascença, que segundo o autor: “foram explorados sem pudor pelo PS e pela Igreja”. Nestas obras, revela-nos duas faces da uma mesma insidiosa realidade, na tentativa de contribuir, pela voz dos perseguidos e silenciados, para a história e a memória dos “vencidos/ esquecidos” da Revolução de Abril. Neste contexto de perseguições e detenções, pós 25 de Novembro, Varela Gomes, Costa Martins, e eu, recebemos, através de amigos, a informação de que pairava sobre nós a ameaça de morte, vinda dos comandos de Jaime Neves. Frente a esta possibilidade, decidimos não nos render aos “ditos vencedores” e escolhemos o exilio como destino. Primeiramente, vivemos clandestinamente em Lisboa até ao dia 9 de Janeiro de 1976. Varela Gomes na sua própria casa. Costa Martins refugiou-se em casa de amigos. E eu fui acolhido na casa do médico Francisco George (um velho amigo), e posteriormente na casa do médico Manuel Souto Teixeira. Nesse dia gélido, de 9 de Janeiro de 1976, partimos para o exílio com destino a Madrid, em diversas viaturas conduzidas por amigos. No percurso ficámos alojados perto da fronteira, na casa da família de Mário Canotilho (jurista antifascista que em tempos negros esteve preso no Aljube), e lá pernoitámos em Pinhel. No dia seguinte, com a colaboração de camaradas, atravessámos a fronteira de Vilar Formoso e prosseguimos o nosso destino. Chegámos à Embaixada de Cuba, em Madrid, no dia 10 de Janeiro, e fomos recebidos solidariamente pelo Embaixador, que nos acolheu durante três dias na sua residência, aguardando a melhor via para conseguirmos chegar a Luanda. A Embaixada de Cuba estava situada frente à Embaixada dos EUA, e por aviso do chanceler, receando que os serviços secretos pudessem detetar as nossas conversas e identificar o nosso paradeiro, reuníamo-nos frequentemente no terraço ou na cave do edifício… Numa das conversas com o Embaixador foi-nos sugerida a viagem via Cuba. E assim aconteceu. Estivemos em Havana cerca de um mês, porque Andrés Pérez (então Presidente da Venezuela) proibira os voos para Angola no seu espaço aéreo. Durante este período tivemos a melhor das recepções que podíamos ter, como evidenciámos na carta de 29 de janeiro que transcrevo mais adiante. Em Havana ficámos alojados numa residência do Protocolo, e para além de termos sido recebidos por Fidel Castro (e seu irmão) fomos visitados frequentemente por dirigentes do governo e quadros do PC de Cuba, com os quais confraternizámos. Recebemos ainda a visita de uma delegação governamental angolana, de visita a Cuba com Paulo Jorge (MinistroNE) e Onambwe (MinistrAI), que um mês depois nos acolheu em Luanda. E também fomos recebidos cordialmente, com um almoço, pelo embaixador português, em Havana, José Fernandes Fafe. Os nosso anfitriões fizeram questão de nos mostrar o seu país, e visitámos centros culturais, campos, escolas, quarteis, organizações revolucionárias como os comités de defesa da revolução e outras, e até zonas turísticas. Não me recordo de ter visto sinais de pobreza, mas sim das dificuldades inerentes ao boicote norte-americano e europeu. Fizemos amizades eternas… Refizemos contactos com escritores cubanos e com o poeta NicolásGuillén, que estivera em Agosto de 1975 connosco em Évora. Através da embaixada de Cuba, em Lisboa, recebi o meu livro Elementos para a Compreensão do 25 de Novembro, que fora editado nesse mês de Janeiro. No tempo desocupado fomos lendo o herói nacional José Marti (1853-1895), figura ímpar da literatura latino-americana, jornalista, ensaísta, professor e poeta. Na tentativa de acelerarmos a nossa partida para Luanda, subscrevemos uma carta dirigida ao Comité Central do Partido Comunista de Cuba, agradecendo o acolhimento dispensado e expondo as razões que fundamentavam a nossa determinação: Devemos expressar profundo reconhecimento pelas provas de confiança, apoio e solidariedade que nos têm sido prodigalizadas pelo Governo e Partido Comunista de Cuba, demais autoridades e também executores.(…) Nesse sentido, cumpre destacar o significado internacionalista que reveste a atitude assumida pelos dirigentes revolucionários da República de Cuba, concedendo de imediato, acolhimento e facilidades de trânsito a militares revolucionários portugueses, que, impossibilitados temporariamente de prosseguir a luta na sua própria Pátria, decidiram continuar ao serviço da causa universal da libertação dos Povos, agora debaixo da bandeira da República Popular de Angola, para onde seguem. Não olvidando que a luta anti-imperialista e pela implantação do socialismo no mundo apresenta várias frentes e que, portanto, deverá obedecer a uma estratégia global. (…) Haverá a considerar a posição de coerência revolucionária que deseja manter cada um dos três militares portugueses que recorreram ao fraterno auxílio da República de Cuba. Desejamos deixar bem claro que nenhuma outra facilidade procurámos, nem procuramos, a não ser uma rápida transferência para a frente aberta de Angola. A presente inactividade, disfrutando da generosa e magnifica hospitalidade da nação cubana, enquanto camaradas nossos continuam presos em Portugal e se combate e morre em Angola em nome da Liberdade.

A viagem para Luanda demorou uns dias, pelo voo ter feito escala em Moscovo e pelo longo percurso via Egipto / Yalta, Sudão / Kartum, República Centro Africana / Benin e Congo Brazaville. Em finais de Fevereiro de 1976 chegámos finalmente a Luanda, e fomos bem recebidos. Ficámos hospedados numa moradia do protocolo angolano e aguardámos a possibilidade de colaborar com as FAPLAS, mas não era fácil a integração… Tivemos um compasso de espera, nós os três e mais sete militares: Victor Jorge (Capitão Piloto), Pedro Jorge (Alferes Piloto), João Pimentel e Jorge Miranda (Sargentos Pilotos) e restantes milicianos subalternos Luís Craveiro Martins, J. Tavares Cabral e Rui Carrusca, que entretanto se exilaram na República Popular de Angola (RPA), também devido à falsa acusação do “golpe-novela” de Novembro que Abril não merecia.

Em Luanda todos beneficiámos da confiança e solidariedade internacionalista do MPLA e do Governo da RPA durante o ano de 1976, colaborando em actividadestécnico-militares (como activos na aeronáutica, na gestão e administração). No meu caso, dada a amizade  com o Eng. Ademar Valles, à época director Nacional da Comissão da Indústria e de Desenvolvimento Industrial (IDI), fui convidado a integrar uma equipa, num trabalho de investigação sobre as indústrias ligeiras nacionalizadas que poderiam ser reabilitadas. Atividade que desenvolvi entre Maio e Setembro de 1976.

Ao longo do tempo desenvolvemos um saudável companheirismo entre Angolanos e Portugueses, e com outros exilados da América Latina. Em Angola viviam-se os tempos da reconstrução e da guerra civil. As dificuldades logísticas começaram a ser profundas e soubemos suportá-las com dignidade e esforço colectivode bons camaradas. Entretanto, as delegações portuguesas que visitavam Luanda manifestavam-nos a sua estima e confortaram-nos, até com bens alimentares. Exemplo maior foi o do camarada “comissário de bordo” da TAP José Brás, que dezenas de vezes nos brindou com “mimos”, desde alimentos a garrafões de vinho. Nunca poderei, nem poderemos esquecer a sua generosidade. Após o regresso do general António de Spínola a Lisboa, com acusações reais e graves relacionadas com a tentativa do golpe militar de 11 de Março, que esteve ainda um dia preso em Caxias e logo foi libertado, decidi solicitar a vinda da minha mulher Vera Blanco a Lisboa, para estabelecer contactos com militares do Conselho da Revolução e amigos de relevância política, no sentido de reflectirem sobre o nosso regresso. A conclusão generalizada dessa iniciativa e seus contactos foi a de que poderíamos e devíamos regressar, para que se fizesse justiça e se esclarecesse a verdade. No final do mês de Agosto 1976, e em resultado desta demanda, elaborei um documento apresentado aos dez militares exilados em Luanda, suscitando uma reunião para a tomada de decisões em conformidade. E assim aconteceu. Não voltei a ter contacto profissional com Angola, excepto a partir de 1980, quando fui afastado ilegalmente das Forças Armadas e colaborei com a empresa de consultoria SNEDE — Sociedade Nacional de Empreendimentos e Desenvolvimento Económico, SARL. Nesta década fui ainda director de projectos para a Guiné-Bissau, no âmbito de uma profícua cooperação técnica com o apoio do ICE — Instituto de Cooperação Económica.

Eu e quatro dos camaradas exilados aceitámos regressar, após termos redigido dois documentos ao governo da RPA e aos dirigentes do MPLA, um de agradecimento e outro de justificação do nosso regresso. Ambos os documentos foram publicados no “Jornal de Angola”, e nos jornais portugueses “Diário”, “Diário de Lisboa” e “Diário Popular” a 9 de Setembro de 1976, dia da nossa chegada a Lisboa. Um dos documentos, merece ser aqui recordado. À atenção do Governo da República Popular de Angola e dirigentes do MPLA: 1) Na sequência dos acontecimentos de 25 de Novembro em Portugal alguns militares portugueses (…) vieram exilar-se na RPA. 2) Passados oito meses desse exílio, em consequência da evolução da situação política em Portugal, ponderadas as razões descritas em documento anexo, e ouvidas as forças progressistas portuguesas, os signatários que constituem parte desses militares decidiram pelo regresso a Portugal. 3) Ao deixarmos Angola queremos expressar o profundo reconhecimento pelas provas de confiança, apoio e solidariedade que nos foram prodigalizadas pelo Governo da RPA e seu MPLA. (…)4) Muito para além da nossa humilde contribuição técnico-militar cooperante na Defesa e na Reconstrução Nacional da RPA o que fundamentalmente quiseram significar com a nossa actuação foi a presença em Angola de revolucionários portugueses em solidariedade actuante com a causa da Libertação e a consequente identidade entre a luta que se desenrola em Angola e a resistência que em Portugal as forças progressistas opõem ao inimigo comum. 5) Sabemos que a queda do fascismo em Portugal foi o desfecho de uma longa luta e o Povo português não esquece o papel decisivo que tiveram os Povos africanos das colónias que, através dos seus Movimentos de Libertação MPLA, FRELIMO e PAIGC, desencadearam um processo irreversível que apressaria o fim do regime opressor comum. 6) Sem a prévia libertação dos povos sob a tutela do colonial-fascismo jamais o Povo Português poderia ser um Povo Livre. (…) As ofensivas da reacçãoem Portugal eram coincidentes com as tentativas de neocolonialismo dos territórios em vias de independência. Não duvidamos que é o mesmo capitalismo imperialista que pretendia e pretende explorar Angola e dominar Portugal. 7) Desenvolvemos sempre a nossa acção contra o inimigo comum. (…) Assim procedemos em Portugal até ao 25 de Novembro de 1975 e pela causa suprema da Libertação dos Povos. . 8) Fiéis à causa da libertação dos Povos de todo o mundo, ao regressarmos à nossa luta em Portugal jamais esquecerão o heroico Povo Angolano e a sua vanguarda revolucionária; do seu sacrifício e luta tiraremos inesgotáveis ensinamentos. Transmiti-los aos nossos camaradas de luta ente contribuir para um maior estreitamento de relações progressistas e revolucionárias entre os dois povos, se já era antes nosso dever, torna-se hoje um imperativo militante.” Luanda, 1 de Setembro de 1976.

(Assinam: Manuel Duran Clemente, cap. SAM / Victor Martins Jorge, cap. Piloto / José Tavares Cabral, tenente Miliciano / Luis Craveiro Martins, alferes Miliciano / Rui Manuel Carrusca, alferes Miliciano).

A viagem de regresso na TAP correu normalmente. E ao sobrevoarmos o Algarve solicitei à “comissária de bordo” que entregasse um bilhete ao Comandante do avião, em que informava estarem a bordo cinco militares que se tinham exilado na RPA, na sequência dos acontecimentos de 25 de Novembro, e que se vinham entregar às autoridades militares. Pedi ainda que avisasse as respectivas autoridades militares da nossa chegada e acrescentei que queríamos evitar qualquer tipo de altercação. A funcionária regressou para me informar que o Comandante agradecia o aviso e iria proceder em conformidade. Quando aterrámos saíram primeiro os passageiros, e o avião foi estacionar no aeroporto militar de Figo Maduro. Aí aguardavam-nos duas viaturas militares que nos conduziram ao Restelo, ao edifico do Ministério da Defesa e Estado Maior General das Forças Armadas (EMGFA), onde fomos ouvidos pelo Juiz de inquérito na presença dos nossos respectivos advogados. Durante a longa espera tivemos oportunidade de ler os nossos comunicados, publicados nos diários da manhã e da tarde. Por volta das dezanove horas fui o primeiro a ser ouvido pelo Juiz, que teve de se inteirar dos respectivosprocessos. Informou-me então que recaiam sobre mim três dezenas de acusações. A primeira, e mais grave, era a de ter intentado contra a ordem estabelecida. Contestei firmemente em minha defesa, afirmando que tudo o que fiz como segundo-comandante da Escola Pratica de Administração Militar (EPAM), nomeadamente destacar uma companhia militar operacional para a RTP (comandada pelo então Capitão Saldanha do Vale), correspondia ao cumprimento de uma directiva militar encerrada em envelope lacrado no gabinete do Comando. A directiva explicitava que em caso de sublevação, e por razões de segurança, devia avançar para os Estúdios do Lumiar uma companhia operacional. Nem ocupei a RTP, nem incitei os portugueses para uma revolução popular armada. Naquela emissão histórica, que silenciou a última voz do MFA Revolucionário, apenas apelei à serenidade e permiti o comunicado (a meio da tarde) duma comissão representativa dos paraquedistas. E ainda hoje me interrogo onde fui buscar tanta tranquilidade, perante a incerteza e o frenesim que reinava no estúdio. Desmenti ao juiz todas as acusações seguintes, inclusive a “ficção” de na minha farda ter um autocolante “dito partidário” do Poder Popular; o perigoso autocolante era de cariz militar e da 5.ª Divisão do EMGFA. O Juiz deu-se por esclarecido e sentenciou a minha Liberdade condicional. Quando saí, os quatro camaradas militares, que aguardavam o momento de serem ouvidos, inteiraram-se da sentença e recuperaram o ânimo: “se este saiu nós vamos sair também”. E assim foi. Os que teceram as insidiosas acusações a “irmãos na acção libertadora de Abril”, por crimes que não cometeram, deviam reflectir sobre as consequências éticas e emocionais que lhes infringiram; condenando-os ao desterro, à humilhação e ao abandono dos familiares durante meses e anos. Não reconhecem, certamente por arrogância, que as ignóbeis incriminações marcaram e feriram para sempre muitos de nós.

No meu caso fui apenas autorizado pelo Juiz a quinze dias de suspensão da liberdade condicional, em Abril de 1977, para visitar os meus dois filhos (de 8 e 10 anos) que não via há dois anos, no Brasil, onde viviam com a mãe e o padrasto. Este doloroso e injusto processo de depuração, que destruiu a vida de muitos camaradas, foi para mim o início de novos caminhos, que desbravei dignamente sem nunca perder a esperança no Sonho de ABRIL  e no seu objectivo : o de uma Democracia, com futuro para todos, iniciada em 1974 e reforçada com a aprovação da Constituição em Abril de 1976 onde todas as “Conquistas do Revolução” do MFA e decretadas pelos 200 Decretos-leis dos governos até ao 25 de Novembro foram plasmados.

A verdadeira Democracia nada deve ao famigerado 25 de Novembro. Antes pelo contrário. Desuniu . Dividiu. Descriminou. Colocou borda fora cidadãos e militares íntegros.

Manuel Duran Clemente

28.Nov.2024