Acerca da Exposição “Não Cruzaremos os Braços! - Contra o Esquecimento” - a luta dos estudantes de Ciências contra a Ditadura colonialista 1968-74

 

COMUNICAÇÃO

 Uma Exposição, mesmo não podendo ser completa, é fundamental que seja rigorosa com os factos e as referências aos principais actores envolvidos. Ora tal não acontece nesta, de forma incompreensível.

É importante que todos saibam que, tendo aceite assumir ser um dos 4 responsáveis pela “Curadoria e Organização”, tentei resolver internamente o erro grave que seguidamente irei expor, alertando para tal inclusivamente a Glória, ainda antes da inauguração desta Exposição na Faculdade de Ciências. Para minha consternação, a Exposição na Escola Secundária de Camões, não só mantém o mesmo erro, como é agravado por um novo e sobre o mesmo dirigente de Ciências.

Faço esta Comunicação por me recusar peremptoriamente a ser cúmplice ou instrumento de "esquecimentos" selectivos, ainda por cima numa Exposição que proclama ser "Contra o Esquecimento".

Os lamentáveis e injustificáveis acontecimentos que tiveram lugar na tarde do passado dia 20 de Novembro, quando da inauguração na ES Camões, em que fui objecto de um infame enxovalho público, onde me foi cortada a palavra, obrigaram-me também a dirigir uma Carta Aberta ao seu Director (que anexo aqui) e que é importante para todos os que querem compreender o que se passou.

Mas, incrivelmente, não foi só o Director a cortar-me a palavra. Houve quem tenha aplaudido a atitude do Director, os insultos e acusações espúrias que este me fez, como descrito na Carta Aberta. Por isso espero que quem me conhece e respeite de facto a luta que esta Exposição quer honrar, leia com atenção o que tenho a dizer. 

A. Os Erros graves, e incompreensíveis, nesta Exposição

A única finalidade da minha intervenção, curta e sóbria, que quis fazer logo a seguir à intervenção de abertura do Director, era expôr esses erros e exigir a sua correcção. Como era meu direito, e sobretudo dever, enquanto um dos Curadores da Exposição. Agora, depois do sucedido naquela tarde, sou obrigado a fazê-lo de forma mais desenvolvida e contundente.

1.  Logo na Lista que foi distribuída, durante a preparação da Exposição, enumerando todos os estudantes perseguidos nesta luta entre 1971 e 1974,  ficou excluído o mandado de captura da Ditadura ao Pedro Ferraz de Abreu, enquanto dirigente da Associação de Estudantes de Ciências, em Outubro de 1972, e subsequente perseguição tenaz para o prender, que o obrigou a lutar na clandestinidade até ao 25 de Abril de 1974.

2. Ora são listados os nomes dos restantes 3 dirigentes que, no mesmo dia e na mesma hora, tiveram mandado de captura e que foram (ou ficaram) presos, porque não conseguiram escapar. Os nomes do Aurélio, da Olga e da Glória, não foram esquecidos. E bem. Mas o grave "apagão" do Pedro na Lista ficou efectivamente consagrado na Exposição, nomeadamente em dois painéis - p6 e p23.  É incompreensível. Alguém entre nós pode acreditar que a Glória, ao lado de quem o Pedro sempre esteve nessa luta, se pudesse "esquecer" deste facto?

3. Mas o que é mais grave, é que eu chamei a atenção da Glória e das irmãs Graça, em reunião de trabalho, meses antes da inauguração, para esta omissão. E novamente à Glória, na véspera da primeira inauguração, em Ciências. Optaram pois, deliberadamente, por manter este "apagão", tanto em Ciências, como no Camões. Isto já não é só incompreensível - é inaceitável.

4. No mesmo painel 23 (com o comunicado das AAEE de Lisboa acerca do Assassinato de Ribeiro Santos - por sinal, redigido pelo Pedro, na clandestinidade), está uma faixa que destaca os "3 dirigentes associativos de Ciências presos (...)". Mas está escrito também: "(...) foram revistadas as casas de 4 dirigentes da AEFCL (...)".

Ora o quarto dirigente, o Pedro, não teve a sua "casa revistada": foi sim alvo de tentativa de prisão, com mandado de captura, no mesmo dia e hora dos 3 que foram presos. Trata-se pois de uma deturpação flagrante da verdade, que por "coincidência" reforça o "apagão" anterior.

5. Na actual Exposição no Camões foi acrescentado um painel onde se reproduz a tal Lista. E aí, além de continuar a não ser mencionado o mandado de captura do Pedro, e a clandestinidade a que foi forçado, está plasmado outro erro incompreensível. Além de refractário à incorporação compulsiva no exército colonial, o Pedro agora é descrito como algo que nunca foi: “refugiado político da OFPRA” (!)

Este erro é duplamente grave. Para se ser refugiado político da OFPRA é preciso cumprir um processo formal nesta Organização, ligada à ONU. Pretender ter esse estatuto, sem  o ter, é um crime de burla ou falsificação. Por outro lado, a combinação destes dois erros, objectivamente reforça ainda mais o "apagão" da clandestinidade em Portugal, ao substituí-la por um exílio no estrangeiro. Que a Glória sabe muito bem que não existiu.

6. Os créditos da Exposição excluem o nome do Pedro. Ora ele foi parte integrante do núcleo que fez abundante recolha de documentos, nomeadamente mais de duas centenas de "scans" da Torre do Tombo, alguns dos quais só nos foram acessíveis por ter sido ele a requerer acesso à sua ficha INIDIVIDUAL na PIDE. Acresce que foi o Pedro que convidou a Glória, e a mim, para dar corpo a esta Exposição; que inicialmente foi concebida como associada ao Colóquio organizado pelo CES-Univ. Coimbra, sobre o mesmo tema da actual Exposição, e que se veio a realizar em Fevereiro deste ano. Embora o Pedro nunca tenha reclamado ser citado nos créditos, é sem dúvida mais um gesto incompreensível, e indigno, de diminuir o seu contributo.

7. Acontece que agora, na ES Camões, é exposto uma página desse arquivo da ficha individual na PIDE, com relato de um PIDE sobre ele. Além de eu não ter sido sequer informado, quanto mais consultado, sobre este acrescento, não foi pedido ao Pedro autorização, nem lhe foi dada oportunidade de o fazer acompanhar com informação adicional, ou seleccionar a parte a ser exposta. O que pode configurar um grave crime de violação de privacidade, e é sem dúvida uma inqualificável falta de respeito. E porquê não terem falado com ele?

Existem mais erros, um deles em flagrante contradição com a documentação que foi reunida e revista, erros que por "coincidência" vão todos no mesmo sentido. Mas estes são os mais gravosos.

B. O significado destes Erros e da insistência neles

Porquê este apagar do mandado de captura, tentativa de prisão e permanência em Portugal na clandestinidade do Pedro para continuar a apoiar a luta? Sobretudo, porquê a resistência, inaceitável, em rectificar estes erros - quando nem seria muito difícil de o fazer? Merece sem dúvida uma reflexão, mas a minha preocupação mais urgente foi apresentar os factos.

Deixo aqui apenas algumas notas incontornáveis sobre o significado deste "esquecimento" selectivo.

"Lapso" inocente? - Impossível, depois de eu ter alertado, reiteradamente, as minhas colegas no chamado "Colectivo Não Cruzaremos os Braços" para o erro inicial.

"Um mero pormenor"? - Para já, não o será certamente para o Pedro e a sua família, cuja vida foi drasticamente afectada por esse "pormenor", quase dois anos. De certo como a dos outros afectados, mas que (e muito bem) não foram apagados.

É muito triste pensar que esse seja o ponto de vista de gente ao lado de quem o Pedro lutou: para uma exposição "contra o esquecimento" enumera-se orgulhosamente -  e bem - uma lista dos "identificados na sala A". Estes são relevantes, sim, mas já não é relevante o "pormenor" de um mandado de captura (renovado até ao 25 de Abril) e subsequente clandestinidade?

Quem viveu de perto essa luta sabe muito bem que a esmagadora maioria das listas de vítimas da repressão, e a mais violenta, vêm precisamente na sequência da luta de protesto contra o assassínio de RS, a 12 de Outubro de 1972, que provocou esses 4 (quatro, não três!) mandados de captura, a 17 de Outubro de 1972.

Negar a sua relevância diminui também o valor da enorme mobilização solidária dos estudantes com estes 4 (não apenas 3) dirigentes. E, evidentemente, também é diminuir o papel de liderança do Pedro. Mas porquê esta obsessão?

Em vez de simplesmente corrigir estes erros, a Glória faz questão, quase teatral, de referir (verbalmente, na inauguração) o “papel importante” do Pedro, logo acrescentando “MAS não esteve sozinho na luta”. Esse comentário é revelador: vem completamente a despropósito, porque ninguém (e em primeiro lugar, o Pedro) alguma vez disse tal disparate. É de facto insultuoso, pela insinuação que faz de "narcisismo".

Se se quer mostrar genuinamente reconhecedora do papel "importante" do Pedro, porque apaga então, selectivamente, a repressão mais violenta sofrida por ele, com maior relevância para a nossa luta?

Mas a pergunta que se impõe é esta: se o Pedro é assim tão importante e se está (felizmente)  vivo, então porque não foi, e continua a não ser, convidado a intervir no âmbito da Exposição (quer na primeira, quer na actual)?

É de resto difícil encontrar um painel na Exposição que não lhe diga directamente respeito, ou mesmo algo de que ele não seja o principal autor. Exemplos: Editoral do IMPROP N.1: autor. Comunicado das AAEEs à População no assassinato de Ribeiro Santos:  autor. Comunicado sobre o Legionário: autor principal. Programa da Direcção da AEFCL 1970 a 73:  "99% autor", conforme testemunho escrito do Orlando. MAEESL: Fundador e primeiro Presidente. Vários boletins "Circular"; etc.

Reconhecer estes factos nada tem a ver com alimentar "narcisismos" - as coisas são como são  e o que há a fazer é reconhecer igualmente os muitos contributos de muitos outros. Como sempre fez o Pedro. Não se valorizam uns, diminuindo o Pedro!

A não ser que alguém se queira pôr em "bicos-dos-pés" e sinta necessidade de diminuir a estatura do Pedro, por ter medo que esta estatura lhe faça sombra?

A narrativa do "Pedro narcisista" e da "Glória modesta e unitária", não cola. O facto é que foi o Pedro que convidou a Glória para o Programa do Colóquio sobre esta luta de Ciências, e foi a Glória que excluiu o Pedro dos Programas de Inauguração da Exposição.  O facto é que nunca vi o Pedro a apagar o papel da Glória, pelo contrário; e vejo agora a Glória a apagar uma parte central da repressão a que o Pedro foi alvo, enquanto jura que ele foi "importante"... mas não tanto.

A  frase com que a Glória concluiu a sua referência ao Pedro na primeira Inauguração, de que o Pedro foi excluído, é reveladora: "Agora é a minha vez". (sic).

C. Considerações finais

Sou um dos muitos estudantes de Ciências que lutaram pela Liberdade, a Paz e a Democracia, incluindo no período referido na Exposição. Tenho muito orgulho nessa luta, que tem estado esquecida, e por isso me empenhei nesta exposição, e aceitei integrar a curadoria e organização da mesma.

Vale a pena relembrar a origem do título escolhido para a Exposição ("Não Cruzaremos os Braços!”).

A expressão foi usada pela primeira vez como título precisamente na "Declaração da Direcção da AEFCL", em Outubro de 1972, a seguir a esses 4 mandatos de captura (Aurélio, Glória, Olga e Pedro) e foi escrita pelo único dos 4 que conseguiu escapar à prisão. E que, correndo elevado risco, com a PIDE em intensa perseguição (ver testemunho da irmã do Pedro), ficou na clandestinidade, empenhado em mobilizar todos os estudantes na luta pela libertação dos seus camaradas presos.

Quando tomámos a expressão como título desta Exposição, quisemos retomar com orgulho o grito de guerra que Ciências adoptou em 1972. Que absurdo e ridículo é, que tendo sido lançado a partir da clandestinidade, seja essa mesma clandestinidade agora objecto deste "apagão" indigno.

Sim, o Pedro não esteve sozinho - muitos outros, nomeadamente a Glória, merecem crédito e devemos salientá-los - a todos. Por isso mesmo considero que é eticamente reprovável fazer "esquecimentos" selectivos, que me parecem mesquinhos e absurdos.

Finalmente, não ficaria bem com a minha consciência se antes de terminar esta Comunicação não expressasse aqui, frontalmente, o mais profundo repúdio pelo comportamento da Glória para comigo, na abertura da Exposição no Camões.

É vergonhoso, e altamente revelador, a Glória ter aplaudido (como eu vi) a intervenção do Director da Escola para me impedir de falar. Afinal não sou um membro do Colectivo responsável pela Exposição? Ou neste "Colectivo" só ela tem direito à palavra?

É intolerável e indigno que a Glória tenha participado no impedir que eu fizesse a correcção dos erros factuais graves que a Exposição contém e que a descredibilizam, deturpando  a verdade histórica.

É vergonhoso, e altamente revelador, a Glória, na sua intervenção, ter verbalmente corroborado o chorrilho de insultos e acusações absurdas do Director (ver Carta Aberta) e a dizer que concordava inteiramente "que ali não era o espaço" para eu falar!

Então qual é o "espaço"?  Em privado, não é, pois que despreza e ignora o que eu digo. Então e em público, em frente à Exposição onde estão plasmados os erros, para todos poderem verificar se o que digo é verdade? Que outro "Espaço" será? o do Silêncio?

O que mais me choca é mesmo a sua cumplicidade com o ataque vexatório à minha pessoa, que ela sabe que não encaixo no perfil tortuoso que o Director me atribuiu; e ao meu passado de luta - que ela tão bem conhece, pois fomos companheiros nessa luta.

Mais há a dizer sobre este comportamento e sobre um Colectivo que afinal só o é de nome. Ainda estou a digerir o choque enorme que isto foi. 

Sim, é verdade que não sou um orador, nem tenho feitio, nem jeito para estas tricanas. Mas quem pense que, por isso, podem abusar de mim e da minha dignidade, e que eu sou um alvo fácil, está muito enganado.

Podem alguns pensar que é apenas um título sonante da Exposição, mas eu levo-o a sério

NÃO CRUZAREI OS BRAÇOS

 

Lisboa, 26 de Novembro de 2024

Vasco Lupi e Costa