Nos 49 anos em que mora no Brasil, depois de passar 15 em Lisboa, foi um baluarte em defesa dos valores históricos, particularmente os arquitetônicos dessa Bahia que também é um pedaço da África incrustado nas terras americanas. Ele é tão baiano quanto o pintor Caribé e o fotógrafo Pierre Verger, para falar apenas de dois ícones estrangeiros que aderiram às terras e à vida da primeira capital do Brasil, nela se integrando como exemplo de amor e de paixão pela arte, pela cultura e pelo povo baiano.
Não sei se vale a pena descrever mais uma vez o evento, quando próceres do mais alto quilate já o fizeram e continuam a fazer, desde Castro Alves e sua insuperável ODE AO DOIS DE JULHO, até o escritor itabunense Cyro de Mattos, membro da Academia de Letras da Bahia, que neste ano nos brindou com uma exemplar saudação a essa magna data, que livrou o Brasil das amarras colonizadoras de Portugal, em 1823. Basta reproduzi-los:
Usamos como ilustração uma foto da libertária imagem do Caboclo, cuja estátua engrandece o desfile e se tornou o símbolo desta efeméride. E adicionamos outras, por nós tiradas, com o único objetivo de mostrar que se trata de uma festa do povo e não das autoridades, dos movimentos sociais e não de partidos políticos, dos grupos de cultura e de música que nos encantam todos os anos com seu desfile, sua alegria, cantorias e espírito libertário e não das elites do poder. A luta pela liberdade é a mais autêntica festa do povo: é isso que o 2 de Julho quer dizer. Tanto que o hino do Estado da Baía brada em alto e bom som: “com tiranos não combinam brasileiros corações”.
O movimento social e militar da Independência do Brasil na Bahia, iniciado em 19 de fevereiro de 1822, teve seu desfecho vitorioso em 2 de julho de 1823. Dois de Julho tornou-se data importante para o povo baiano, que a festeja todos os anos com alma, força e alegria. Celebra um movimento desejoso de incorporar a então província na unidade nacional brasileira. Um movimento assim veemente com o qual o sentimento federalista pulsava verdades no espírito emancipador do povo baiano.
Não foi feito em gabinetes e salões, aconteceu nas ruas, nos campos de batalhas, com mortos e feridos. Contou com a participação decisiva do povo como protagonista. Indígenas, escravos libertos, gente humilde das classes baixas. Figuras de comando tiveram performance significativa no desenrolar da pugna. Sobressai o general Labatut como comandante de nossas forças militares no seco, enquanto Lord Cochrane foi o responsável pela guarda da Baía de Todos os Santos.
É imperioso mencionar a figura da mártir Joana Angélica, morta ao impedir que os portugueses tomassem o convento da Lapa. E a de Maria Quitéria, valorosa mulher que combateu os adversários portugueses no Recôncavo. Vestida numa farda de soldado, com a arma na mão, lutou com coragem incomum contra os portugueses na barra do Paraguaçu, em Santa Amaro e Cachoeira. Houve também Maria Felipa, uma negra catadeira de marisco, a mulher que comandou mulheres negras para seduzir os portugueses enquanto outras queimavam suas embarcações.
Fala-se que, na batalha final, João das Botas, um marinheiro português que aderiu à autoridade do príncipe Pedro, com o seu conhecimento instruiu Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco do Conde na armação e comando dos barcos para combater a frota portuguesa. Foi singular sua atuação como trunfo na guerra.
O movimento militar e social motivou a Castro Alves, o poeta mais amado dos baianos, a escrever um poema de versos magníficos. O poema “Ode a Dois de Julho” vem expresso com o discurso eloquente, versos nas imagens candentes da esperança e da liberdade, aparecendo juntas numa só voz que evoca a peleja da treva e do clarão. O libertário construtor de uma poética solidária sobre a escravidão dos negros africanos, agora com versos incandescentes de esperança, canta a liberdade como o sentimento mais valoroso que envolve os baianos no palco do confronto. Como noiva do sol a liberdade, essa peregrina esposa do porvir, faz-se motivo de inspiração ao estro do poeta de alta voz condoreira.
Ode a Dois de Julho
Castro Alves
Era no Dois de julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
"Neste lençol tão largo, tão extenso,
"Como um pedaço roto do infinito...
O mundo perguntava erguendo um grito:
"Qual dos gigantes morto rolará?!..."
Debruçados do céu... a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha — o fuzil avermelhado!
Era o Circo de Roma — o vasto chão!
Por palmas — o troar da artilharia
Por feras — os canhões negros rugiam!
Por atletas — dois povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!
Não! Não eram dois povos, que abalavam
Naquele instante o solo ensanguentado...
Era o porvir — em frente do passado,
A Liberdade — em frente à Escravidão,
Era a luta das águias — e do abutre,
A revolta do pulso — contra os ferros,
O pugilato da razão — com os erros,
O duelo da treva — e do clarão!...
No entanto a luta recrescia indômita...
As bandeiras — como águias eriçadas —
Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha,
O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis...
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Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Foram cantar os hinos do arrebol,
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina:
Eras tu — Liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!...
Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito...
Um trapo de bandeira — n'amplidão!...