Das janelas do segundo andar, do número 177 da Rua Direita de Santo Antonio, o Solar Santo Antonio, Casa-Museu de Dimitri Ganzelevitch, em Salvador, eu e Tânia Miranda assistimos ao desfile comemorativo de mais um 2 de Julho, data magna da Bahia, símbolo da liberdade do povo brasileiro, pois foi aqui que a independência do Brasil se consolidou, com luta, suor e sangue.

Todos os anos Dimitri repete a festa, cercado de amigos. Primoroso fotógrafo, cronista e escritor de nacionalidade francesa, Dimitri Ganzelevitch dedicou-se de coração a cultivar a cultura baiana e brasileira, sendo um de seus mais ferrenhos defensores, atento guardião de sua história.

Nos 49 anos em que mora no Brasil, depois de passar 15 em Lisboa, foi um baluarte em defesa dos valores históricos, particularmente os arquitetônicos dessa Bahia que também é um pedaço da África incrustado nas terras americanas. Ele é tão baiano quanto o pintor Caribé e o fotógrafo Pierre Verger, para falar apenas de dois ícones estrangeiros que aderiram às terras e à vida da primeira capital do Brasil, nela se integrando como exemplo de amor e de paixão pela arte, pela cultura e pelo povo baiano.

Não sei se vale a pena descrever mais uma vez o evento, quando próceres do mais alto quilate já o fizeram e continuam a fazer, desde Castro Alves e sua insuperável ODE AO DOIS DE JULHO, até o escritor itabunense Cyro de Mattos, membro da Academia de Letras da Bahia, que neste ano nos brindou com uma exemplar saudação a essa magna data, que livrou o Brasil das amarras colonizadoras de Portugal, em 1823. Basta reproduzi-los:

Usamos como ilustração uma foto da libertária imagem do Caboclo, cuja estátua engrandece o desfile e se tornou o símbolo desta efeméride. E adicionamos outras, por nós tiradas, com o único objetivo de mostrar que se trata de uma festa do povo e não das autoridades, dos movimentos sociais e não de partidos políticos, dos grupos de cultura e de música que nos encantam todos os anos com seu desfile, sua alegria, cantorias e espírito libertário e não das elites do poder. A luta pela liberdade é a mais autêntica festa do povo: é isso que o 2 de Julho quer dizer. Tanto que o hino do Estado da Baía brada em alto e bom som: “com tiranos não combinam brasileiros corações”.

Palavras do acadêmico Cyro de Mattos

O movimento social e militar da Independência do Brasil na Bahia, iniciado em 19 de fevereiro de 1822, teve seu desfecho vitorioso em 2 de julho de 1823. Dois de Julho tornou-se data importante para o povo baiano, que a festeja todos os anos com alma, força e alegria. Celebra um movimento desejoso de incorporar a então província na unidade nacional brasileira. Um movimento assim veemente com o qual o sentimento federalista pulsava verdades no espírito emancipador do povo baiano.

 

Não foi feito em gabinetes e salões, aconteceu nas ruas, nos campos de batalhas, com mortos e feridos. Contou com a participação decisiva do povo como protagonista. Indígenas, escravos libertos, gente humilde das classes baixas. Figuras de comando tiveram performance significativa no desenrolar da pugna. Sobressai o general Labatut como comandante de nossas forças militares no seco, enquanto Lord Cochrane foi o responsável pela guarda da Baía de Todos os Santos.

 

É imperioso mencionar a figura da mártir Joana Angélica, morta ao impedir que os portugueses tomassem o convento da Lapa. E a de Maria Quitéria, valorosa mulher que combateu os adversários portugueses no Recôncavo. Vestida numa farda de soldado, com a arma na mão, lutou com coragem incomum contra os portugueses na barra do Paraguaçu, em Santa Amaro e Cachoeira. Houve também Maria Felipa, uma negra catadeira de marisco, a mulher que comandou mulheres negras para seduzir os portugueses enquanto outras queimavam suas embarcações.

 

Fala-se que, na batalha final, João das Botas, um marinheiro português que aderiu à autoridade do príncipe Pedro, com o seu conhecimento instruiu Cachoeira, Santo Amaro e São Francisco do Conde na armação e comando dos barcos para combater a frota portuguesa. Foi singular sua atuação como trunfo na guerra.

 

O movimento militar e social motivou a Castro Alves, o poeta mais amado dos baianos, a escrever um poema de versos magníficos. O poema “Ode a Dois de Julho” vem expresso com o discurso eloquente, versos nas imagens candentes da esperança e da liberdade, aparecendo juntas numa só voz que evoca a peleja da treva e do clarão. O libertário construtor de uma poética solidária sobre a escravidão dos negros africanos, agora com versos incandescentes de esperança, canta a liberdade como o sentimento mais valoroso que envolve os baianos no palco do confronto. Como noiva do sol a liberdade, essa peregrina esposa do porvir, faz-se motivo de inspiração ao estro do poeta de alta voz condoreira.

 

Transcrevemos abaixo, como o final dessas anotações sobre Dois de Julho, o poema do genial poeta baiano.

 

Ode a Dois de Julho

Castro Alves

 

Era no Dois de julho. A pugna imensa

Travara-se nos cerros da Bahia...

O anjo da morte pálido cosia

Uma vasta mortalha em Pirajá.

"Neste lençol tão largo, tão extenso,

"Como um pedaço roto do infinito...

O mundo perguntava erguendo um grito:

"Qual dos gigantes morto rolará?!..."

 

Debruçados do céu... a noite e os astros

Seguiam da peleja o incerto fado...

Era a tocha — o fuzil avermelhado!

Era o Circo de Roma — o vasto chão!

Por palmas — o troar da artilharia

Por feras — os canhões negros rugiam!

Por atletas — dois povos se batiam!

Enorme anfiteatro — era a amplidão!

 

Não! Não eram dois povos, que abalavam

Naquele instante o solo ensanguentado...

Era o porvir — em frente do passado,

A Liberdade — em frente à Escravidão,

Era a luta das águias — e do abutre,

A revolta do pulso — contra os ferros,

O pugilato da razão — com os erros,

O duelo da treva — e do clarão!...

 

No entanto a luta recrescia indômita...

As bandeiras — como águias eriçadas —

Se abismavam com as asas desdobradas

Na selva escura da fumaça atroz...

Tonto de espanto, cego de metralha,

O arcanjo do triunfo vacilava...

E a glória desgrenhada acalentava

O cadáver sangrento dos heróis...

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Mas quando a branca estrela matutina

Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras

No verde leque das gentis palmeiras

Foram cantar os hinos do arrebol,

Lá do campo deserto da batalha

Uma voz se elevou clara e divina:

Eras tu — Liberdade peregrina!

Esposa do porvir — noiva do sol!...

 

Eras tu que, com os dedos ensopados

No sangue dos avós mortos na guerra,

Livre sagravas a Colúmbia terra,

Sagravas livre a nova geração!

Tu que erguias, subida na pirâmide,

Formada pelos mortos do Cabrito,

Um pedaço de gládio — no infinito...

Um trapo de bandeira — n'amplidão!...