O livro recebeu o singulartítulo de Catorze Janelas Abertas, numa clara alusão ao número de versos do soneto, na sua versão mais conhecida.

 

Para quem não o conhece, Florivaldo Mattos é dos maiores poetas vivos da Bahia e talvez o seu decano. Nascido em Uruçuca, no sul da Bahia, sofreu duas influência básicas na sua trajetória: as estradas de ferro, que na época ainda eram um dos principais meios de transporte na região; e a cultura do cacau, que envolvia uma ricamalha social, com sua história épica, imortalizada no romance por Jorge Amado. Sua poesia é cheia de evocação dessa região, tanto que seu último livro de poemas se chamasimplesmente, Cacaueiros.

 Mas Florisvaldo Mattos não é apenas poeta. É também jornalista, escritor, ensaísta e professor universitário. Talvez o mais importante jornalista entre os sobreviventes de uma geração extraordinária, que inclui Fernando Rocha Peres, Glauber Rocha, Joca (o Pena de Aço), Fernando Rocha, Ariosvaldo Matos e tantos outros cobras que honraram a nossa imprensa. Trabalhou em praticamente todos os jornais de sua época, como o bravo Jornal da Bahia, A Tarde, Diário de Notícias e Jornal do Brasil, neste tendo atuado não somente na sucursal de Salvador, como também na matriz, no Rio de Janeiro. Exerceu praticamente todos os cargos da carreira de um jornalista: repórter, chefe de reportagem, editor, e editor chefe. De 1990 a 2003, foi editor do glorioso Caderno Cultural, suplemento de cultura publicado semanalmente pelo jornal A Tardeque marcou época na Bahia, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) 

Atuou nas revistas Ângulos e Mapa, editadas em Salvador, tendo sido membro ativo da chamada Geração Mapa, expressão do modernismo na Bahia nos anos 60, que teveGlauber Rocha como um de seus principais expoentes e que reuniu os mais importantesescritores e artistas da época. É pesquisador e um  dos maiores conhecedores da Academia dos Rebeldes, movimento literário baiano que marcou os anos de 20 a 30 do século passado, com expoentes como Jorge Amado e Sosígenes Costa, tendo legado a já imortal obra A Academia dos Rebeldes e Outros Exercícios Redacionais, publicadapela ALBA.

Além disso, foi professor da Escola de Comunicação da UFBA, de onde é aposentado, e talvez nenhum jornalista profissional das últimas gerações não tenha sido seu aluno e passado pelo  crivo de seus ensinamentos.

Ocupa, desde 1995, a cadeira 31 da Academia de Letras da Bahia.

Mas o que importa aqui é a poesia de Florisvaldo Mattos e, particularmente, os seus sonetos. Há que frisar ser ele um dos maiores sonetistas da Bahia. E ser um bom sonetista já configura, de antemão, ser um bom poeta. Na percepção dos maiores críticos literários do país, o soneto é a mais difícil forma de expressão poética, pelo que, costuma-se dizer que um mal sonetista é geralmente um mal poeta.

Em seus sonetos, Florisvaldo aborda temáticas bastante variadas, mas com alguns pontos de concentração, como no caso daqueles que nos conduzem aos mitos gregos e romanos, pelos quais parece fascinado. Nesse aspecto, pode-se dizer que sofreu particular influência de Sosígenes Costa, cujos sonetos costuma declamar e publicar nas redes sociais, numa ressonância do ensaio que escreveu sobre o grande poeta de Belmonte.

É por esta razão que escolhemos quatro sonetos de evocação greco-romana de sua lavra para introduzirmos nossos leitores em sua fascinante poesia.

 

QUATRO SONETOS GRECO-ROMANOS DE FLORISVALDO MATTOS

 

AO DEUS DO VINHO E DA INSPIRAÇÃO

(Com Baco na vindima)

 

A Paulo Martins, poeta, escritor e amigo

 

Condenado a viver por entre grades,

Do alto em que me despenco, serra acima,

Os dias passam, e eu, sentado em cima

De uma pira, desvio tempestades.

Encontro Baco, perto da vindima.

Leio para ele versos de Propércio.

O deus lamenta quedas de comércio

E busca na Ásia de Cibele a estima.

Baco venera versos bem traçados.

Ele me fita, banzo, e pede rima,

Que não seja de pano sem bordados.

Vou para casa. Volto. Ele se anima.

Sabor e sonhos nunca interditados:

Trago na mão dois sóis engarrafados.

 

SONETO ROMANO

                            A Valdomiro Santana 

Quin etiam, Polypheme, fera Galatea sub Aetna

Ad tua rorantis carmina flexit equos.

 Sexto Propércio (Elegia III, 2) *

 

Não sou Orfeu, não sei deter os rios,

Nem toco flauta no portão do Inferno,

Para tirar do Amor grilhões sombrios

E postá-lo na margem em que aderno.

 

Não sou Camões; Calíope não me ensina

Os caminhos do mar. Vou para o bosque.

Sei que irão perguntar-me adiante quousque

Tandem há de durar a minha sina.

 

Socorre-me, Pound. Leve o barco e o remo,

Guarde-os perto do campo de azaleia.

Se mais seguros, lá, mais bem guardados.

 

Oh, Propércio, avise aí a Polifemo,

E me deixe no Etna com Galateia

Montada em seus cavalos orvalhados.

 

*E mais ainda, Polifemo, Galateia, no sopé do fero Etna,

Aos teus cantos desviou os cavalos orvalhados.

(Sexto Propércio, Elegias, trad. Maria da Glória

Novak, 1992).

 

NA CASA DE ASTÉRION 

Tecer no azul do céu a cor da morte

Ou no verde do mar, na branca espuma,

E até não perceber quando se arruma

A casa onde a brisa, última consorte,

Descerra a porta para o Minotauro.

Apenas ouço-lhe o ruidoso trote,

Com o trágico de Borges holofote,

Igual à solidão em que me instauro.

Ele vem devagar, de agudo chifre,

Na tarde melancólica, de sombra

Vasta, que me rodeia e que me assombra,

Passo a passo, a exigir que me decifre.

 

            Não sou Teseu, dispenso-me do luto.

            Vence-me a dor dos urros que ainda escuto.

 

(Salvador, manhã de 05/03/2022)

 

SOB ARCOS DO PARNASO

 

Tudo começa quando Sileno ama.

Quando a noite do desconsolo baixa,

A solidão semelha-se a uma caixa,

Em cujo fogo o coração se inflama.

 

Pego um livro de páginas amargas

E vou direto ao poema que me chama

Ao íntimo fulgor – ele é todo chama

De um coração que não divide cargas.

 

Subo e desço serras, enfrento vagas.

Vou por caminhos, sinto que me resta

Alívio redentor de contas pagas.

 

“Tristezas não pagam dívidas”, dizes.

Por isso é que passeio por floresta

De amor, de canto e pássaros felizes.

 

(SSA-BA, 20.11.2017)

 

 

Obras de Florisvaldo Mattos:

 

Reverdor, 1965 / Fábula Civil, 1975 / A caligrafia do soluço e poesia anterior, 1996 (Prêmio Ribeiro Couto de Poesia da União Brasileira de Escritores) / Estação de prosa & diversos, 1997 / Mares anoitecidos, 2000 / Galope Amarelo e outros poemas, 2001 / A comunicação social na revolução dos alfaiates, 1998 / Travessia de Oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, 2004/ Poesia reunida e inéditos, 2011 / A Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais, 2022.