Na ditadura salarazista, o 10 de junho foi batizado “Dia de Camões, de Portugal e da Raça”; após a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, o título foi substituído por “Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades
de Língua Portuguesa”. E as comemorações em torno de Camões podem ocorrer durante todo o mês de junho, vez que o dia exato de seu nascimento é incerto.
Em Portugal, tradicionalmente, as comemorações têm a participação das mais altas autoridades do país, dado que se trata também da data nacional portuguesa. Mas o que nos interessa abordar hoje, nessa efeméride tão
significativa -- Quinto Centenário do nascimento de Camões --, é o que está sendo feito em homenagem ao grande bardo e à língua portuguesa, da qual ele se tornou o maior intérprete.
Impossível, no entanto, falar de tudo o que aconteceu, está acontecendo ou ainda acontecerá. Vamos nos restringir a um evento que foi um dos mais significativos, com todo o direito a se tornar num símbolo para nossa comunidade: a comemoração camoniana organizada pelo Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e, em particular, a palestra proferida pelo poeta e crítico literário carioca Alexei Bueno.
Por coincidência digna de lembrança, o Real Gabinete Português de Leitura, se situa na Rua Luís de Camões, no Rio, o que engrandece simbolicamente o evento. Por outro lado, não podemos deixar de enaltecer o nome de seu
presidente, Francisco Gomes da Costa, e de sua Vice-Presidente Cultural e diretora do Centro de Estudos, Gilda Conceição Santos, sem dúvida os organizadores dessa comemoração, que contou com a participação da Consulesa Geral de Portugal, Gabriela Duarte de Albergaria. Mas é preciso dizer que, apesar das várias homenagens prestadas a personalidades benfeitoras e divulgadoras da obra de Camões, e outras ocorrências, o ponto alto da organização do evento foi a escolha de Alexei Bueno para proferir a palestra temática. Alexei é um intelectual de proa, um pesquisador incansável dos nossos clássicos, e não deixou por menos: disse tudo o que precisava ser dito.
Seria pecaminoso tentar falar da palestra de Alexei Bueno, interpretá-la ou resumi-la. Pois se trata de um verdadeiro ensaio, cheio de colocações originais, exames detalhados, descobertas e interpretações de alto interesse para todos aqueles que se dedicam a estudar a obra do maior poeta português. Sendo assim, decidimos reproduzi-la na íntegra. Seu título já nos diz muito: CAMÕES: 500 ANOS: O TEMPO ACORRENTADO. Sim, Camões continua atual, não só na sua lírica como nos versos de sua grande epopeia “Os Lusíadas”. Sua obra é um espelho para todos os poetas; é um conjunto de signos da história de nossa língua mater; é um símbolo de perenidade. Não é por outra razão que Alexei se refere a um “tempo acorrentado”, um tempo que não passou, que continua igual, que sempre se faz hoje. Camões é um hoje, um agora.
CAMÕES, 500 ANOS: O TEMPO ACORRENTADO
Alexei Bueno
Nada mais compreensível, no caso dos poetas nacionais, ou que de tal posição se aproximam, e ainda mais no caso daqueles que consolidaram determinada língua literária, do que esta sensação de quase espantosa perenidade, de presença quase física — podemos dizer assim — que é o que creio sentirmos todos os que aqui nos congregamos neste dia duplamente glorioso. Em Camões, no entanto, que reúne em nível insuperável essas duas características, soma-se uma terceira, mais rara na verdade, mas, talvez, a de maior força afetiva, que é o que tentaremos demonstrar nestas breves divagações sobre um artista inesgotável, como inesgotável foi o homem, que muito romanticamente não podemos separar daquele, ainda que nos reportemos à Renascença.
Nos festejos desta data até hoje inigualada pela imponência, a do meio milenário, não há como não nos recordarmos, mesmo que superficialmente, do já longo histórico de homenagens ao poeta. De início, e por muito tempo, elas foram bibliográficas, talvez com certo destaque para as duas traduções castelhanas d’Os Lusíadas, saídas no ano mesmo de sua morte e da união das coroas, 1580. A medalhística, de larga florescência, se firma no século XVIII. De 1817 é a magnífica edição parisiense da epopeia, pelo Morgado de Mateus, mas é com a aproximação do Romantismo que se consolida esse culto estético e patriótico a um só tempo. Em 1825 Garrett lança o poema Camões, o mesmo Garrett que, dotado de um sentido da história ainda raro entre os seus contemporâneos, levanta o problema da localização dos ossos de Camões, “os ossos prováveis de Camões”, de acordo com o verso de António Nobre publicado nas Despedidas, demanda de longa e desastrada história. O apogeu — e, cremo-lo, apogeu para sempre — desse culto camoniano ocorrerá nos festejos do seu tricentenário de morte, em 1880, verdadeira apoteose binacional, em Portugal e no Brasil, por meio de todas as formas possíveis de expressão, das artes plásticas à literatura. Entre cortejos, concertos, recitais, medalhas, gravuras, quadros e uma infinidade de publicações, nunca nos devemos esquecer dos quatro sonetos —
inicialmente cinco — de Machado de Assis, suíte de obras-primas de um grande poeta — poeta da maturidade, há que afirmar — sempre empanado pelo ficcionista, assim como vale a pena ressaltar a visceral proximidade com a
ambiência lusitana do autor de “O alienista” e de “A derradeira injúria”, filho de portuguesa, afilhado de portuguesa, marido de portuguesa, e assíduo frequentador desta casa, fatos muito pouco lembrados, quando não voluntariamente esquecidos.
E por que tal insuperável apoteose de 1880? A resposta está na própria sempre reiterada multiplicidade do autor, assim como, obviamente, em questões históricas. Num Brasil a oito anos da abolição da escravatura e a nove da República, bem como num Portugal a dez anos do Ultimatum britânico de 1890, a 28 anos do Regicídio e a 30 da República, Camões servia para todos os gostos, aos monarquistas como cantor dos reis que estenderam a Fé e o Império, e aos republicanos como duro crítico dessa mesma realeza e de todo o resto. Entrando pelo século XX, as efemérides se sucedem, sem que nenhuma se compare àquela: os quatro séculos de nascimento, em 1924, quando Portugal lança uma bela série de selos postais; os quatro séculos de Os Lusíadas, em 1972, na agonia do Estado Novo, ou os quatro séculos de sua morte, em 1980. E eis-nos chegados à mais redonda e imponente das datas, cujo biênio comemorativo inauguramos neste momento.
* * *
No alvorecer do século XV, enquanto França e Inglaterra se refaziam da Guerra dos Cem Anos; enquanto Espanha se dedicava à Reconquista, enquanto Itália e Alemanha ainda estavam a séculos de um longínquo sonho de
nacionalidade, e boa parte da Europa, saindo do feudalismo, ainda não atingira uma unidade nacional, Portugal, no ponto mais ao Ocidente do mundo conhecido, dirigia todos os seus esforços de nação unificada para a
expansão comercial marítima, a descoberta de novas rotas e produtos novos, fundando assim, através de uma série de façanhas náuticas e militares, o seu vasto império comercial e mercantil, consequência terrena de um
justificador pretexto sagrado de guerra aos infiéis e expansão da fé. Fundiam-se assim, num desses raros momentos em que se dividem as águas da história, o ideal cavalheiresco e religioso medieval, tão importante ao surgimento do Estado português, feito por vias de reconquista, com a curiosidade empírica e científica, já da Renascença, de todo o processo das Grandes Navegações. A pesquisa científica direta, o reordenamento de todo o conhecimento astronômico, náutico, matemático, geográfico, linguístico, causa e consequência da epopeia expansionista, casava-se, desse modo, com o ideal heroico antigo e medieval, união das virtudes bélicas do herói pagão clássico com o ideal superior do mártir cristão, além do cavalheirismo galante, típico do medievo.
A literatura portuguesa, após dar o último e maior fruto do medievalismo na obra de Gil Vicente, e esgotar, no Cancioneiro geral, um lirismo palaciano que não comportava mais a nova realidade, e cujas origens remontavam à própria origem da língua, começava então a receber de fora, da Itália especialmente, a estrutura formal que a conduziria ao apogeu. O retorno de Sá de Miranda da Itália, onde ficara cinco anos, o contacto com Dante, Petrarca e Ariosto, a introdução dos metros do dolce stil nuovo, a releitura renascentista de todo o patrimônio clássico sobrevivente, a introdução do decassílabo, da terza rima e da oitava, bem como dos gêneros característicos do período, o soneto, a égloga, a canção, etc., tudo isso vinha unir-se a um material literário autóctone, à historiografia militar imperial, à crônica trágico-marítima, ao relato de viagens, formando assim esse quase milagroso húmus necessário à eclosão da verdadeira epopeia.
Já então se perguntavam os poetas portugueses, em meio à convicção de que as façanhas da expansão nacional igualavam ou mesmo superavam as da Antiguidade Clássica, qual seria o novo Homero dessa nova raça de guerreiros e de nautas. E é sobre esse fundo histórico que aparece o homem, armado da pena e da espada, boêmio devasso e amante platônico, arruaceiro das noites de Lisboa e gigante espiritual e moral, encarcerado no Reino, mutilado em África, naufragado no Cambodja, encontrado na miséria em Moçambique, vagando por três continentes, amante de aias da corte, de cativas africanas e de chinesas, morrendo junto com a independência portuguesa, homem-síntese da Renascença, homem-símbolo de sua pátria, pai da língua e, junto com Tasso, o maior poeta épico do mundo moderno.
* * *
Quatro séculos de pesquisas, conjecturas, interpretações certas e errôneas, perda e achado de documentos, suposições com maior ou menor fundamento proporcionaram-nos por fim uma magra, porém mais ou menos consensual biografia camoniana. Filho de Ana de Sá e Simão Vaz de Camões, fidalgo empobrecido de origens galegas, Luís Vaz de Camões deve ter nascido em Lisboa entre 1524 e 1525, mais provavelmente no primeiro ano.
As variadas hipóteses dadas por Manuel Severim de Faria, Pedro Mariz e Manuel de Faria e Sousa, confirmadas ou desmentidas por documentação posteriormente encontrada, reforçam a afirmação acima. Sua mocidade deve ter transcorrido em Coimbra, a contarmos com a confissão em poema seu a respeito de longo tempo e de amores passados junto ao Mondego. Sobre esta hipótese se levantam também as explicações para a cultura enciclopédica de Camões, que aí teria cursado a Universidade, fato sobre o qual jamais se encontrou qualquer documento comprobatório. Hipótese mais plausível relaciona os seus estudos com a presença em Coimbra de um seu tio, D. Bento, prior do Mosteiro de Santa Cruz e Cancelário da Universidade, que se teria encarregado da sua educação.
Quanto à motivadora de seus amores coimbrãos, tudo se resume a hipóteses mais ou menos bem construídas. De volta a Lisboa, teria participado de uma expedição ao Norte da África,provavelmente a Ceuta, onde, num combate com mouros, viria a perder o olho direito, ferido por um pelouro. De fato, numa de suas redondilhas publicada nas Rimas de 1598, alude ao conhecimento notório em Portugal dessa sua mutilação, através da referência à alcunha de Cara-sem-olhos que lhe dera uma dama patrícia.
Em 1550, de acordo com documento aludido por Manuel de Faria e Sousa, Camões ter-se-ia alistado para ir para a Índia, mas esta partida só se deu de fato em 1553, como prova a famosa carta de perdão encontrada pelo Visconde de Juromenha na Torre do Tombo, quando preparava a sua edição das Obras completas. Nela dois desembargadores do Paço, em nome de D. João III, concedem um perdão em favor de Luís Vaz de Camões, preso no Tronco de
Lisboa por ter ferido, junto com outro mascarado, certo Gonçalo Borges, no dia de Corpus Christi. Acrescenta a carta ser o réu mancebo pobre que partiria este ano para servir na Índia. O perdão é concedido com o pagamento de uma multa de quatro mil-réis. De fato, as cartas de Camões do mesmo período, que nos chegaram em apógrafos, no-lo mostram numa convivência boêmia com prostitutas e arruaceiros, descrevem cenas de espancamento e fazem comentários sobre ordens de prisão contra vários membros do grupo, característica comportamental esta, aliás, não incomum entre grandes nomes da Renascença, como Benvenuto Cellini, Christopher Marlowe ou Caravaggio, que a piores extremos chegaram. Em resumo, após esse período conturbado, Camões embarca para a Índia em março de 1553, na armada de Fernando Álvares Cabral. Começam então os 17 anos de peregrinação do poeta pelo Oriente. Ao que tudo indica participou de uma expedição ao Malabar e de outra ao estreito de Meca. Vagueou pela Índia e provavelmente pela China, ao menos de acordo com uma velha tradição, sempre perseguido pela pobreza, apesar da popularidade granjeada por seu engenho poético e valor pessoal. Naufragou na foz do rio Mekong, salvando a nado os originais da sua epopeia, como narra na estrofe 128 do último canto, morrendo, porém, no mesmo naufrágio uma sua amante chinesa, origem do ciclo imortal de sonetos para Dinamene, nome de uma ninfa usado por ele para representá-la. Em certo momento, promessas de trabalho o levaram para Moçambique, sem nada no entanto ter-se concretizado, e onde inclusive chegou a ser preso por dívidas de viagem. Lá o vai encontrar Diogo do Couto, “tão pobre que vivia de amigos”, tendo sido necessária uma cotização dos mesmos para lhe pagarem o retorno a Portugal, onde chegou a 7 de abril de 1570. Durante o
período de Moçambique foi-lhe furtado o Parnaso de Luís de Camões, livro em que organizava as suas poesias líricas.
Chegado a Lisboa, senhor apenas de seus escritos, busca em vão a proteção da família de Vasco da Gama, herói do Poema. Desencantado com o total desinteresse que encontra, introduz no mesmo algumas acerbas estâncias a respeito do ocorrido. Finalmente, em setembro de 1571, consegue um privilégio para a impressão d’Os Lusíadas, que vem à luz no ano seguinte.
Em 27 de julho de 1572, D. Sebastião lhe concede a pensão anual de 15.000 réis, quantia de valor medíocre, mas que será mantida após a morte do poeta em benefício de sua mãe.
Publicada a epopeia, nada mais de concreto se sabe sobre a vida de Camões, até sua morte a 10 de junho de 1580, data que é hoje o dia nacional de Portugal. Dois anos sobreviveu ao desastre de Alcácer-Quibir e à desaparição do monarca ao qual tão entusiasticamente incentivara para a ação bélica contra o inimigo infiel, impressionado que estava com a dissensão europeia perante a ameaça iminente do imperialismo otomano, até o advento da Batalha de Lepanto. Mais do que nunca deve ter sofrido a amarga presciência da decadência nacional, que surge diversas vezes, de maneira impressionante, no corpo do Poema. Sob o governo fantasma do cardeal D. Henrique vive seus dois últimos anos, vendo à sua volta a “austera, apagada e vil tristeza” que já antes sentira. Meses após a sua morte, Portugal perde a independência, sendo anexado por sessenta anos à Coroa Espanhola. Nesse exato momento se inicia a consagração mundial do seu nome e da sua obra.
* * *
A obra poética de Camões representa a suma de todos os gêneros do lirismo renascentista, como talvez nenhum contemporâneo seu de outra literatura tenha realizado, e a criação do português moderno, a mesma língua literária que usamos até hoje. Comparado com seus contemporâneos e antecessores próximos, a linguagem de Camões é intensamente viva, expressiva, flexível e liberta de arcaísmos. O único arcaísmo sintático que passa incólume por ele é a não flexão por número do pronome pessoal lhe, que só seria consagrada no século XVII. As mesmas formas introduzidas e utilizadas por Sá de Miranda encontram em Camões, com a diferença de pouquíssimos anos, a sua realização definitiva.
Em todos os gêneros do período escreveu, e em todos, excetuando o teatro em verso, onde o lirismo e a sátira de espírito ainda medieval de Gil Vicente permanecem imbatíveis, superou a todos. Além da epopeia neoclássica representada pelos Lusíadas, deixou-nos cerca de duzentos sonetos, fora as églogas, canções, odes, oitavas, sextinas, redondilhas, glosas, etc. Pelos sonetos, que vão do petrarquismo amoroso à meditação filosófica, do elogio histórico à confissão pessoal, é o maior mestre do gênero na história da língua. Em todo o resto da obra mantém-se o altíssimo nível estético, a profundidade de pensamento e a inalterável grandeza moral, culminando tudo, talvez, na longa e profunda meditação lírica das redondilhas “Sôbolos rios que vão”, síntese de uma vida, triunfo ético e religioso de um espírito sobre a sua própria contingência, suma platônica de toda a poesia ocidental e, muito provavelmente, o mais alto poema de nossa língua.
Nos Lusíadas e na obra lírica cria Camões o grande decassílabo português,
verso nobre da nossa poesia, com uma flexibilidade expressiva e emocional
nunca superada. Todos os reparos feitos posteriormente à sua técnica são
obra da incompreensão poética de metrificadores esteticamente
imprestáveis, como Castilho e o famigerado padre José Agostinho de Macedo.
Por obra do primeiro, seguida por protoparnasianos tão vazios quanto ele,
chegaram a antepor o decassílabo bocagiano, com a sua uniformidade muito
corretamente monocórdia, ao de Camões, de variedade sinfônica. Tais
opiniões caíram no mesmo vácuo em que foram parar os demais censores da
epopeia, como alguns do período iluminista, com o seu neoclassicismo de
origens falsamente clássicas, com a sua incompreensão de grande parte da
estética anterior à Renascença, de importante parte desta própria, assim
como da estesia maneirista e especialmente da barroca, e com a mil vezes
nefasta e espúria inserção da ideologia do progresso no campo da arte, que
persevera até nossos dias, acrescida pela acelerada e programada
obsolescência do capitalismo tecnológico dentro do qual vivemos.
Pela primeira vez, com Camões, a língua atinge as suas maiores
possibilidades emocionais. O verso se amolda sonoramente ao que procura
exprimir com a naturalidade milagrosa da alta poesia. Encrespa-se como as
ondas que descreve, estrondeia como as batalhas que narra, desfaz-se de
languidez amorosa ou se arroja violentamente para o alto quando o infla o
orgulho de cantor da pátria.
Ensombrece-se pressentindo os males que atingiriam o império, indigna-se
com os maus-tratos dos poderosos para com os humildes e desvalidos, vibra
belicamente descrevendo as façanhas heroicas e tremula com um visionarismo
etéreo quando tenta enxergar nas névoas do futuro.
O tom muda às vezes de uma palavra a outra, sob o jugo de sua onipotência
expressiva. Num soneto-epitáfio, no qual narra a vida de um jovem e
obscuro marinheiro morto no mar com menos de 25 anos de idade, podemos
ler:
No mundo poucos anos, e cansados,
Vivi, cheios de vil miséria dura;
Foi-me tão cedo a luz do dia escura,
Que não vi cinco lustros acabados.
Corri terras e mares apartados,
Buscando à vida algum remédio ou cura;
Mas aquilo que, enfim, não quer ventura,
Não o alcançaram trabalhos arriscados.
Criou-me Portugal na verde e cara
Pátria minha Alenquer, mas ar corrupto
Que neste meu terreno vaso tinha,
Me fez manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que bates na Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa pátria minha!
No último terceto ouvimos o verso encrespar-se numa sequência de bês, tês
e erres, para quase desfazer-se, liricamente, como um mel, no último
verso, expressão de amor e saudade do país natal.
Sua adjetivação é de uma expressividade incomparável, mais objetiva que o
uso de substantivos na maioria dos poetas. Nunca em português se
reencontrou a mestria caracterizadora da adjetivação camoniana, duma
exatidão destituída de todo enfeite ou ouropel, em sequências célebres e
inesquecíveis:
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
É curioso lembrar que, no festival de bobagens a respeito de poesia em
quem sempre fomos pródigos, já houve quem anatematizasse os adjetivos, em
nome de uma suposta “poesia substantiva”. Esta oitava, que descreve o
Gigante Adamastor, tem 14 adjetivos, 14 adjetivos em oito versos, e não
conheço nada mais “substantivo” do que ela. Outros exemplos:
Na férvida e implacábil espessura;
………………………………….
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.
(Canto V, 48)
Duma austera, apagada e vil tristeza.
(Canto X, 145)
E neste verso, o que valeria o banalíssimo substantivo abstrato
“tristeza”, sem a impressionante gradação dos três adjetivos que o
precedem, “austera”, “apagada” e “vil”?
Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo,
(Canto X, 154)
E, como a sua adjetivação, sua sonoridade não igualada :
No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas
Quando às iras do vento o mar responde,
(Canto VI, 8)
Na lírica amorosa, que anda ao lado da filosófica, daquela que percebe a
mudança implacável e o irresolvível desconcerto do mundo, Camões ergue a
língua a uma elegância inédita e nunca igualada, como neste soneto
célebre, cuja dívida petrarquiana nem um pouco diminui:
Tanto de meu estado me acho incerto, Que em vivo ardor tremendo estou de
frio; Sem causa, juntamente choro e rio, O mundo todo abarco e nada
aperto. É tudo quanto sinto, um desconcerto; Da alma um fogo me sai, da
vista um rio; Agora espero, agora desconfio, Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando, Num’hora acho mil anos, e é de
jeito Que em mil anos não posso achar um’ hora. Se me pergunta alguém
porque assim ando, Respondo que não sei; porém suspeito Que só porque vos
vi, minha Senhora.
Toda a parte mais alta de sua poesia, os grandes sonetos, as maiores
redondilhas e canções, os episódios culminantes d’Os Lusíadas possuem
aquela mais rara qualidade da obra de arte sublime, que é a de parecer
preexistente, como involuntária, diríamos não composta. Os versos dos
sonetos a Dinamene e dos confessionais, dos episódios de Inês de Castro,
do Velho do Restelo, do Gigante Adamastor, da abertura e do final da
epopeia parecem, para os nossos ouvidos criados na língua portuguesa, da
qual ler Camões no original é um dos maiores privilégios, como eternamente
existentes, em sua perfeição sobre-humana, no mundo platônico das ideias
puras.
O corpus da obra lírica de Camões, quase inteiramente de publicação
póstuma, a partir de 1595, foi variando durante quase trezentos anos de
atribuições cada vez menos fundadas. Um longo trabalho de crítica séria,
iniciado no século XIX, repudiou tudo o que havia sido acrescentado de
claramente apócrifo, chegando por fim a um conjunto de um nível aceitável
de autenticidade, com o qual só nos resta conviver.
* * *
O caráter de poeta nacional de Camões se comprova, além da quase
obviedade, pelo dia de hoje, pois desconhecemos nação cuja data nacional
seja oriunda da biografia de um artista. Como, entre os antigos, Homero
para os gregos e Virgílio para Roma, como Dante para a Itália, como
Shakespeare para a Inglaterra, como um Eminescu para a Romênia, como um
Petöfi para a Hungria, como um Púshkin para a Rússia, como um Mickiewicz
para a Polônia, como Solomós para a Grécia, como Martí para Cuba, ele
representa para Portugal esse papel que, no Brasil, foi dividido entre os
nossos dois maiores românticos, Gonçalves Dias e Castro Alves, e que na
riquíssima poesia francesa não alcançou um consenso, apesar do titanismo
de Victor Hugo. É característico, diga-se de passagem, das literaturas de
países que não viveram a Renascença, ou nela não alcançaram o seu apogeu
estético, como os do Leste europeu e os das Américas, esse aparecimento
dos poetas nacionais no Romantismo, movimento coevo à independência de
muitos deles. E quando dizemos “poetas nacionais”, utilizamos a expressão
exata, pois só a Espanha, apesar da magnífica floração lírica do Siglo de
Oro, encontrou seu nume tutelar num prosador, Cervantes, na obra do qual a
importância da poesia é secundária.
Camões, como todos os artistas que já caminharam sob o sol, encontrou não
poucos críticos de má-vontade, e recebeu a sua inarredável dose de humana
estupidez. Entre os iluministas que há pouco lembramos, nem vale a pena
citar Voltaire, já que a incapacidade de compreensão desse mau poeta e
crítico hediondo sempre foi pública e notória, descompondo Camões na
excelente companhia de Dante e Shakespeare, e reforçando a nossa velha
impressão de que os grandes ironistas são quase invariavelmente críticos
inaptos.
E como ninguém é profeta em sua terra, em Portugal ele foi a vítima de
predileção de uma inveja incansável — obviedade que dispensa qualquer
documentação probatória —, uma entre as muitas desgraças que tanto o
perseguiram, baixo sentimento que ele relembra no final de um soneto
dedicado ao Vice-Rei Dom Luís de Ataíde:
Que vençais no Oriente tantos Reis, Que de novo nos deis da Índia o
Estado, Que escureçais a fama que hão ganhado Aqueles, que a ganharam de
infiéis; Que vencidas tenhais da morte as leis, E que vencêsseis tudo,
enfim, armado, Mais é vencer na pátria, desarmado, Os monstros e as
Quimeras que venceis.
Sobre vencerdes, pois, tanto inimigo, E por armas fazer que sem segundo No
mundo o vosso nome ouvido seja; O que vos dá mais fama inda no mundo, É
vencerdes, Senhor, no Reino amigo, Tantas ingratidões, tão grande inveja.
Tal inveja em solo pátrio encontraria a sua encarnação maior na fascinante
figura de sociopata que foi a do Padre José Agostinho de Macedo, cuja
biografia, por Carlos Olavo, supera muito romance picaresco. Os dois
volumes da sua Censura das Lusíadas, publicados em 1820, na esteira dos
equívocos poéticos do Gama, em 1811, e d’O Oriente, três anos posterior,
com os quais pretendeu superar a grande epopeia, são um monumento eterno
de incapacidade de compreensão estética.
Quatro décadas mais tarde, a publicação do poema Dom Jaime, ou a Dominação
de Castela, de Tomás Ribeiro, em 1862, permitiria a Antônio Feliciano de
Castilho emitir o célebre julgamento, que, pelo menos, daria ensejo à
obra-prima da prosa portuguesa que é “Bom senso e bom gosto” de Antero de
Quental, e a toda a Questão Coimbrã:
“Nenhum bom poeta dos nossos dias, ainda que inferior a Camões, se
resignaria, cuido eu, a assinar como sua uma única estância inteira de
todos os dez cantos; se há um que diga que ousava, que me aponte qual é
essa estância fênix que ao fim de quase três séculos está ainda tão
lustrosa e juvenil.”
A hipertrofia formalista de Castilho, que, dentro da sua mediocridade,
possuía algumas corretas e úteis noções de poética, uniu-se aí a problemas
de prosódia dos quais ele nunca teve inteira percepção.
Para chegarmos ao século XX e retornarmos ao exterior, Ezra Pound, em
ensaio recolhido no livro The spirit of romance, de 1910, consegue emitir
aquela que é, ao que tudo indica, a visão mais completamente equivocada da
epopeia camoniana:
“Camões escreve um bombástico resplandecente, que vez por outra é poesia.
A fala sem musicalidade de Portugal é dominada, suas asperezas
transformadas em harmonia. Como retórica florida, Os Lusíadas, creio eu,
dificilmente poderão ser superados. Seu encanto se deve à força do seu
autor, à sua unanimidade, à sua fé inabalável na glória das coisas
externas; e há também um certo prazer em entrar em contacto com um
espírito como o de Camões, o espírito de um homem que tem entusiasmo
suficiente para escrever uma epopeia em dez livros sem deter-se uma única
vez para qualquer tipo de reflexão filosófica. Ele é o Rubens do verso.”
Se a comparação “Rubens do verso” é brilhante, a afirmação de que o poeta
escrevera toda uma epopeia “sem deter-se uma única vez para qualquer tipo
de reflexão filosófica” chega às raias do inacreditável, e só nos leva à
convicção de que o poeta norte-americano, independentemente do duvidoso
alcance do seu português, não leu Os Lusíadas, e o mais impressionante é
que uma aberração de tal nível ainda encontra lusófonos para repeti-la.
Camões, grande poeta do pensamento, numa linha que se firmou como a mais
rica da poesia de nossa língua, filosofa o tempo inteiro, na lírica como
na épica, o que encarece a monstruosidade da infelicíssima afirmação. O
que é o episódio do Velho do Restelo, senão uma inigualável meditação
sobre a
Hybris? Com a leviana superficialidade nada incomum em sua crítica, Pound
nos retrata esse homem torturado pelas mazelas do seu tempo e de todos os
tempos como um satisfeitíssimo cortesão...
Mas, para uns tantos equívocos e incompreensões, quantos o enalteceram, de
Torquato Tasso, seu único êmulo na epopeia moderna, que lhe dedicou um
soneto; a Cervantes, que, no Don Quijote, fala “del excelentísimo
Camoens”, que logo receberia o muito justo título de “Príncipe dos poetas
de Espanha”; e, sem lembrar da quase unanimidade dos grandes românticos —
apenas como curiosidade, Púshkin o cita seis vezes na sua obra poética —,
a Richard Francis Burton, que lhe traduziu magnificamente vasta parte da
poesia, ou ao romancista holandês Jan Jacob Slauerhoff, que o transformou
em personagem de sua obra, entre tantos outros, e a lista não se esgotaria
tão cedo.
Não há, convenhamos, poema com quase 9.000 versos que não seja passível de
críticas. No sexto capítulo de Viagens na minha terra, o insuspeito
Garrett, como muitos outros, implica com o célebre verso “O falso Deus
adora o verdadeiro!”, que, pessoalmente, sempre nos pareceu uma síntese
brilhante deste consórcio entre paganismo e cristianismo que foi a
Renascença. Aquilino Ribeiro, em Camões, Camilo, Eça e alguns mais,
embirra com a inserção do episódio de São Tomé no Canto X, mas, ainda que
nunca saibamos se ali houve alguma ingerência clerical ou complacência
diplomática, o certo é que São Tomé foi o apóstolo das Índias, e a
descoberta do caminho marítimo para elas é o episódio central do poema.
Muitos estranham ou lamentam que a descrição da Máquina do Mundo, no mesmo
canto, tenha seguido o sistema ptolomaico, mas não seria um anacronismo —
aí sim, um anacronismo — a mitológica Tétis descrever para o Gama a
Máquina do Mundo pelo correto mecanismo de Copérnico? Para nós basta o
esplendor da descrição, e se muitos já julgaram o verso raciniano “La
fille de Minos et de Pasiphaé” como um dos mais esplêndidos da língua
francesa, nós afirmamos o mesmo, em relação à nossa língua e agora no
Canto V, do arqui-épico “A destruída Quíloa com Mombaça.”
Falar da presente efeméride poderia deixar de fora qualquer depoimento
pessoal, mas este, inclusive por muito sucinto, talvez valha a pena. Se as
minhas primeiras leituras poéticas, bastante precoces, foram as
dos grandes românticos brasileiros, Camões veio logo em seguida, através,
antes de tudo, dos sonetos inigualáveis e dos trechos antológicos d’Os
Lusíadas. A minha sensação de maravilha por esse apogeu sonoro da nossa
língua que é o poema data dessa época, e me acompanha até hoje. Desde que
me dou por gente trago de cor toda a Proposição, a Invocação e a
Dedicatória, bem como a maior parte do Velho do Restelo, o encontro com
Adamastor, a verdadeira sinfonia de topônimos que domina aventurosamente o
Canto X até chegar às últimas oitavas do poema, entre vários outros
trechos. A capacidade milagrosa de Camões de subjugar a língua ao
sentimento que intenta descrever, de torná-la heroica, elegíaca, bélica,
piedosa, indignada, é uma espécie de alegria eterna para todos os que leem
português, e o nosso maior privilégio. Mas o amor pelo poema,
implacavelmente, transforma-se em amor pelo homem, este homem-síntese que
foi Camões, e que subjaz, quase pré-romanticamente, como um sol oculto, no
centro de toda a sua obra.
Trago sempre de memória, por outro lado, um sem-número de versos que
funcionam quase como aforismos em inúmeras situações da vida humana, o
mesmo que acontece com Dante ou Shakespeare em suas respectivas línguas.
Como, de fato, não relembrar, em momentos de desânimo quanto ao curso do
nosso destino e ao equívoco irremissível das nossas escolhas, versos como:
Oh! como se me alonga, de ano em ano, A peregrinação cansada minha! Como
se encurta, e como ao fim caminha Este meu breve e vão discurso humano!
ou:
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente Em minha perdição se conjuraram;
Como nos lembrarmos da nossa assustadora fragilidade sem que nos venha à
consciência o verso “Quão fácil é ao corpo a sepultura”?
E para quem teve — e como ele os deve ter tido! — algum amor
irrecuperável, como esquecer um dístico como este, que responde, em
populares redondilhas, à célebre reflexão de Francesca da Rimini na Divina
Comédia:
Vi que todo o bem passado Não é gosto, mas é mágoa.
Como, enfim, pensar na onipresente injustiça que rege a vida humana sem
lançar mão da décima imortal?
AO DESCONCERTO DO MUNDO
Os bons vi sempre passar No mundo graves tormentos; E para mais me
espantar, Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos. Cuidando
alcançar assim O bem tão mal ordenado, Fui mau, mas fui castigado: Assim
que só para mim Anda o mundo concertado.
Tal deve ter sido o que ocorreu a Stefan a quando, no final do ano de
1941, o último antes do seu suicídio, traduziu para o alemão e imprimiu
nos cartões de cumprimento aos amigos a última oitava do Canto I d’Os
Lusíadas, como símbolo do que passava e sentia, e vale a pena lembrar que
a língua rigorosamente atual desta estrofe, rigorosamente a nossa língua,
data de mais de quatro séculos e meio:
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
Se sempre fui fortemente atraído pelo gênero épico, n’Os Lusíadas
encontrei esse sentimento ímpar, esse “amor da pátria, não movido de
prêmio vil, mas alto e quase eterno”, que nunca pude achar em nenhuma
outra epopeia, de Homero a Tasso, incluindo Virgílio, por motivos
evidentes, sendo importante que aqui se faça a distinção entre poemas
narrativos e os estritamente épicos. E trata-se de uma “pátria” num
sentido ilimitado, em verdade a ideia pura do que ela seja, mais ou menos
como a “Marselhesa” desperta uma espécie de patriotismo revolucionário em
qualquer ocidental não-francês.
Mas o que talvez mais me tenha sempre impressionado em Os Lusíadas — e
também na lírica — é a força moral que dele emana, a sua audácia em
condenar a nobreza, o clero, o próprio rei, em sofrer pela decadência
nacional com uma coragem espantosa, ao contrário do que afirmou, em texto
completamente equivocado, que acabamos de reproduzir, Ezra Pound. Esse
substrato crítico, extraordinário no autor de Os Lusíadas, faz desses
duros trechos do seu poema como uma armadura ética intemporal para exemplo
dos que o leem.
Creio que a língua portuguesa gerou três epopeias, uma no modelo estrito,
o poema fundador de Camões, em verso, e no Brasil, em prosa, séculos
depois, esses dois monumentos que são Os sertões, de Euclides da Cunha,
onde há algum influxo de Oliveira Martins, e o Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa, no qual a influência de Aquilino Ribeiro é inafastável,
obras que são um pouco como a Ilíada e a Odisseia brasileiras. Mais do que
o Sebastianismo, que poderia, lato sensu, fazer uma ponte entre a primeira
e a segunda obra, sinto nelas todas um substrato heroico, humano e
linguístico que nos irmana e que só nos pode encher de orgulho,
independentemente de quaisquer contingências.
Uma das características que mantém Camões perenemente ao nosso lado, como
deixamos entrever no início desta fala, é o seu invariável senso de
justiça, e a sua perene empatia humana pelos fracos e os desgraçados — a
“servil gente”, nas suas próprias palavras —, talvez iniciada no contacto
direto com as classes populares em sua juventude de estroina e em seus não
poucos encarceramentos, e, obviamente, muito ampliada ao longo do seu
exaustivo deambular pelo Oriente, sabe-se lá em que condições. Nas
estrofes 45 e 46 do Canto X vemo-lo vituperar um dos seus heróis máximos,
Afonso de Albuquerque, o terríbil, logo ele, por ter mandado enforcar um
marinheiro que fornicara com uma escrava:
Mais estâncias cantara esta Sirena
Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,
Mas alembrou-lhe uma ira que o condena,
Posto que a fama sua o mundo cerque.
O grande Capitão que o fado ordena
Que com trabalhos glória eterna merque,
Mais há de ser um brando companheiro
Para os seus, que juiz cruel e inteiro.
Mas em tempo que fomes e asperezas,
Doenças, frechas e trovões ardentes,
A sazão e o lugar fazem cruezas
Nos soldados a tudo obedientes,
Parece de selváticas brutezas,
De peitos inumanos e insolentes,
Dar extremo suplício pela culpa
Que a fraca humanidade e Amor desculpa.
E não seria o sempre apaixonado Camões que deixaria de apiedar-se de tal
falta.
No final do Canto VII, vemo-lo, com violência sem paralelo numa epopeia de
glorificação nacional, atacar os nobres, áulicos ou parasitas, que se
utilizavam da sua posição para enriquecer a custa do povo, e especialmente
o clero, muito possivelmente os jesuítas, num país dominado pela
Inquisição, o que é de uma grandeza moral e de uma coragem verdadeiramente
temerárias:
Nenhum que use de seu poder bastante
Para servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio;
Nem, Camenas, também cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei, no ofício novo,
A despir e roubar o pobre povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do Rei severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre, com pouco experto peito,
Razões aprende — e cuida que é prudente —
Para taxar, com mão rapace e escassa,
Os trabalhos alheios que não passa.
Com toda a franqueza, não conhecemos coisa semelhante na literatura
ocidental. Da mesma maneira, no final do insuperável Canto V, o poeta
ataca a tacanhez da elite portuguesa de então:
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudos e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso
Da mesma maneira que ataca os próprios reis, numa época de monarquia por
direito divino e poder absoluto:
Aqui tens companheiro, assim nos feitos
Como no galardão injusto e duro;
Em ti e nele veremos altos peitos
A baixo estado vir, humilde e escuro.
Morrer nos hospitais, em pobres leitos,
Os que ao Rei e à lei servem de muro!
Isto fazem os Reis cuja vontade
Manda mais que a justiça e que a verdade.
Isto fazem os Reis, quando, embebidos
Numa aparência branda que os contenta,
Dão os prêmios, de Aiace merecidos,
À língua vã de Ulisses, fraudulenta.
Mas vingo-me, que os bens mal repartidos
Por quem só doces sombras apresenta,
Se não os dão a sábios cavaleiros,
Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.
E não apenas os reis de Portugal, mas os das maiores casas reais da
Cristandade, no início do Canto VII, por sua eterna desunião perante os
interesses que seriam comuns a todos.
Finalmente, e agora nas redondilhas de “Sôbolos rios que vão”, vemos o
poeta apelar para a justiça divina contra os poderosos deste mundo, que
usam de sua força para massacrar os fracos e imbeles:
Aqueles que tintos vão No pobre sangue inocente, Soberbos co’o poder vão,
Arrasai-os igualmente, Conheçam que humanos são.
Em tudo isso, por todas as partes, neste poeta que buscava glorificar um
Império, e, portanto, a sua conquista e expansão, a piedade e a
compreensão humana, que fazem dele uma figura quase contraditória de
contemporâneo nosso, se é que merecemos tal título. Esse homem, que nos
levou a tantas terras, tantos climas, tantos povos, tantas paisagens,
tantas culturas, que muito sofreu e muito amou — para usarmos a expressão
do Evangelho —, foi amado, e amado em vida. Esse homem que se apiedou de
pobres marinheiros mortos no mar ou injustamente justiçados, de uma plebe
anônima que espalhou os seus ossos por todos os continentes conhecidos,
teve amigos que, não apenas por consciência da sua grandeza, o amaram,
como aqueles simples e obscuros companheiros seus que, em 1581, ao saberem
da sua morte na longínqua Metrópole, encomendaram a um pintor indiano o
seu retrato, o famoso “Retrato de Goa”. Além do supremo artista que foi,
Camões foi superiormente humano, e por isso segue conosco, imune a seu
tempo já tão distante, um tempo que ele mesmo, como homem e como artista,
acorrentou.