A recente audição parlamentar da Ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, expôs uma fratura na forma como Portugal lida com a segurança pública e a crescente radicalização em setores específicos das forças policiais.

Entre jogos políticos e silêncios cúmplices, questiona-se: estaremos, em Portugal, a deixar crescer uma ameaça interna que fere os pilares democráticos?

Nos últimos anos, um fenómeno inquietante emergiu no seio das forças de segurança em Portugal: o clandestino “Movimento Zero”. Alegadamente composto por polícias descontentes, este movimento terá, em diversas ocasiões, encorajado ou até liderado manifestações associadas a ideias ultradireitistas. A utilização da farda policial para legitimar discursos radicais gerou uma enorme preocupação. Os cidadãos têm testemunhado a mobilização de protestos públicos que desafiam abertamente os valores democráticos e os princípios de uma polícia de proximidade. Num cenário de repetidas acusações e ameaças à ordem democrática, foi prometido um inquérito. Porém, as respostas tardam.

E, no meio desta questão, uma audição da Ministra Blasco poderia ser o momento para responder às dúvidas. Poderia, mas não foi.

O caso de Odair Moniz, um jovem cidadão morto a tiro por um agente policial, trouxe novamente à tona questões de brutalidade policial e abuso de poder. Este trágico evento abalou a comunidade e gerou protestos contra a falta de responsabilização em casos de violência letal protagonizada por agentes de segurança. Na sessão parlamentar, esperava-se que o caso Moniz fosse central. No entanto, foi deixado nas margens do discurso, abordado apenas de forma indireta, sem questionamento real sobre as ações da polícia e sobre os critérios de formação e supervisão aplicados aos agentes no terreno.

A recente morte de Antonio Vinicius Lopes Gritzbach, um delator do crime organizado no Brasil, ecoa de forma perturbadora com as tensões vividas em Portugal. Gritzbach denunciou abusos policiais, apenas para ser assassinado dias após o seu testemunho. Este caso relembra-nos de que as fronteiras entre o combate ao crime e o abuso de autoridade podem tornar-se perigosamente ténues. O Brasil, mergulhado numa polarização profunda, enfrenta hoje uma crise de segurança pública que, de acordo com especialistas, está ligada a uma politização e radicalização das forças de segurança. Portugal poderia seguir o mesmo caminho?

Na audição de 11 de novembro, Margarida Blasco, ministra que já foi alvo de críticas severas pela sua postura em relação à segurança pública, teve a oportunidade de esclarecer a sua posição sobre os temas urgentes e sensíveis que assombram o país. Porém, ao invés de abordar a gravidade do movimento clandestino, das questões de brutalidade policial e do assassinato de Odair Moniz, a Ministra focou-se em temas distantes da realidade, como a "fiscalização da imigração ilegal".

No discurso da Ministra, a “fiscalização da imigração ilegal” surge como prioridade, numa narrativa que associa imigração a criminalidade, reforçando estigmas e desviando o foco do debate sobre a violência policial. Esta escolha foi criticada pelo deputado socialista Pedro Delgado Alves, que sublinhou o perigo de associar imigração irregular com práticas criminosas, uma mensagem que estigmatiza comunidades e pode potenciar tensões étnicas e sociais. No entanto, apesar da crítica, a oposição permaneceu numa linha moderada, sem apontar para o que muitos consideram ser a verdadeira crise: o surgimento de movimentos radicais dentro das forças de segurança e a insuficiente resposta institucional a estes fenómenos.

No plano orçamental para 2025, o Governo propõe investir 127,2 milhões de euros nas forças de segurança – uma redução em comparação com o planeado anteriormente. Este corte, aliado à ausência de uma política robusta de formação em cidadania e segurança de proximidade, levanta questões sobre a capacidade das forças policiais de responderem aos desafios de uma sociedade plural e complexa. A ausência de investimento na formação de agentes que compreendam e respeitem as nuances da cidadania moderna pode criar um vazio onde ideias radicalizadas encontram espaço para crescer. Portugal precisa de forças de segurança que reforcem os valores democráticos, não que os minem.

A audição da Ministra Blasco deixou muitas perguntas sem resposta. A aparente indiferença dos principais atores políticos – quer da direita, quer da esquerda – em abordar o perigo de movimentos radicais dentro das forças de segurança, somada à criminalização implícita da imigração, esboça um cenário preocupante. Se a democracia é um exercício constante de vigilância e responsabilidade, urge questionar a que custo estamos a permitir a expansão de atitudes e movimentos que minam os seus alicerces. Esta indiferença é, em si mesma, um convite ao crescimento de ideologias extremistas dentro das próprias instituições que deveriam ser as defensoras da ordem pública e da paz social.

Enquanto cidadãos, torna-se vital reconhecer que o silêncio perante estes sinais não é uma opção neutra, mas sim uma escolha que poderá ter consequências severas para o futuro do país. A construção de uma segurança pública genuinamente democrática exige mais do que leis e orçamentos; exige liderança e coragem para enfrentar temas desconfortáveis, e para desafiar padrões de comportamento que distorcem o papel das forças de segurança. Como referiu Martin Luther King Jr., "O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons."

O debate sobre a segurança pública não pode ser confinado ao Parlamento, nem limitado a uma discussão de orçamentos. Este é um tema que requer a atenção de toda a sociedade civil, desde os cidadãos comuns até às instituições e à academia. Portugal precisa de um diálogo franco e inclusivo sobre o papel das forças policiais numa sociedade moderna, democrática e multicultural.

É urgente estabelecer uma linha clara e inflexível que separe o profissionalismo policial de qualquer forma de ideologia extremista, garantindo que movimentos como o Movimento Zero sejam identificados e supervisionados com rigor, evitando-se, a todo o custo, a sua integração na estrutura institucional do Estado. Permitir que setores das forças de segurança promovam visões polarizadoras e radicais é correr o risco de seguir um caminho já percorrido por outras nações, onde a politização da polícia levou ao enfraquecimento da confiança pública e ao aumento da violência social.

Se desejamos que as forças de segurança sejam agentes de paz e não de confronto, é essencial investir numa formação sólida em cidadania e direitos humanos. Infelizmente, o orçamento de 2025 não prevê qualquer fundo específico para este fim, o que levanta a questão: estará o Governo realmente comprometido com uma polícia de proximidade que compreenda e respeite a diversidade da sociedade portuguesa?

Programas de formação contínua que eduquem os agentes sobre a importância de uma abordagem humanista e inclusiva à segurança são fundamentais. Sem esta formação, continuaremos a ver casos como o de Odair Moniz, onde o resultado de uma intervenção policial termina tragicamente, deixando perguntas sobre o preparo emocional e ético dos agentes que, todos os dias, têm o poder de decidir sobre a vida dos cidadãos.

No final da audição, o silêncio persistente sobre os temas críticos deixou um sabor amargo. É um silêncio que fala de uma falta de transparência e de uma certa passividade perante uma potencial ameaça interna que cresce nas sombras. Entre a extrema-direita emergente e as forças de segurança, há um espaço cinzento que não deve ser ignorado. Portugal não pode arriscar-se a seguir o exemplo de outros países, onde as forças policiais tornaram-se veículos de agendas políticas radicais e antidemocráticas.

O verdadeiro desafio da democracia é o de manter-se fiel aos seus valores, mesmo sob pressão. Para isso, a liderança política deve ter a coragem de enfrentar a verdade e, quando necessário, reformar as próprias estruturas do poder. A segurança, afinal, não é apenas uma questão de força, mas de justiça, humanidade e respeito pela dignidade de todos os cidadãos.

A sociedade portuguesa, conhecida pela sua hospitalidade e abertura, merece uma força de segurança que a represente com integridade. Resta saber se os nossos líderes terão a visão e a coragem para criar essa mudança, antes que o preço a pagar se torne demasiado alto.