Chegam à superfície quando tocam à campainha para entregar a refeição. Não têm de falar, apenas to deliver

A sua vida é a sua bicicleta. É nela que trabalham a fazer o que ninguém quer fazer e fazem-no por meia dúzia de euros.

Shamim tinha outro emprego para além de serpentear nas ruas de Lisboa entre carros e, às vezes, palavrões, procurando a sorte por ter nascido num país que não é de sorte.

Há sessenta anos eram os portugueses a procurá-la onde quer que ela estivesse, mão-de-obra barata para construir prédios na região de Paris e em toda a França. Os nossos de então viviam em bidões…Os que agora chegam vivem às carradas em quartos ou casas clandestinas à espera da sorte e que não as derrubem.

Shamim não teve sorte. Alguém lhe quis roubar o sustento e ele agarrou a bicicleta para perseguir a sorte e entregar muitas refeições a quem as encomendava. Um homem esfaqueou-o até à morte. Morto, ficou oito horas à espera de que os serviços de emergência o viessem buscar.

Dizem as notícias que o assassino não logrou retirar-lhe a bicicleta. Nada mais dizem acerca do autor do crime. Dão conta que o bengalês que trabalhava como servente num restaurante e entregava refeições deixa a viúva e dois filhos pequenos.

Shamim, o bengalês que fazia em Portugal o que os portugueses não querem fazer, era um escravo dos novos tempos das democracias liberais.

Deixam-nos vir trabalhar para fazer o que ninguém que fazer. Mas depois soltam-lhes os cães amestrados                                                        (alguns no auge da carreira política à sua custa) para os mandar para a sua terra.

Ganham de duas maneiras, nos salários de miséria que pagam e na divisão entre os que estão um pouco acima do ponto de vista social e os novos desgraçados da Terra, vivendo quase como o proletariado do século XIX.

Shamim era um ser humano. E estes às vezes amam e são solidários. Outras vezes matam. Quanto mais rebaixarem todos os Shamim do mundo, mais serão assassinados. Quanto mais forem respeitados como seres humanos, menos serão assassinados.

A cidade quase nem deu pelas facadas. Ninguém sabe quem ele é. E, no entanto, os que aguardam a confeção da comida sem os Shamim não poderiam esperar pelas refeições.

Ele esperou oito longas horas noturnas à beira da rua para o virem buscar. Que triste sorte a de Mohamed Shamim.

Talvez quando todos sentirmos as facadas de Shamim a cidade se torne mais acolhedora e como escreveu Paulo de Tarso, mais conhecido entre os cristãos como São Paulo, na Epístola aos Galatos…Não há judeus, nem gregos, nem escravos, nem homens, nem mulheres; porque vós sois todos apenas um em Cristo…

Mohamed Shamim pelo nome seria crente de Alá. Era um homem. É essa humanidade que nos une. Que importa que seja muçulmano ou hinduísta ou o que quer que seja… Eu, sem fé nos deuses, e com pouca fé nos homens, confesso-me crente na bondade, na benevolência, na solidariedade, na amizade, no amor, na ajuda recíproca e na empatia. Essa é a estrada dos humanos. A outra é a das feras.