Amílcar Cabral: Um Líder Global da Liberdade e da Dignidade Humana

Foi nos bastidores da História e nas margens da diplomacia internacional que Amílcar Cabral traçou os alicerces de uma África livre.

Num diálogo profundo com Joffre Justino, diretor do jornal Estrategizando, mergulhamos no legado de Amílcar Cabral — estratega da libertação africana, pensador humanista e referência moral da lusofonia. Uma excelente conversa/lição  que evoca os 50 anos de independência de Cabo Verde com memória, justiça e visão de futuro.

Amílcar Cabral: Um Líder Global da Liberdade e da Dignidade Humana

Fundador, visionário, estratega e educador, Cabral foi muito mais do que o líder do PAIGC – foi o verdadeiro mentor político, intelectual e cultural de todos os movimentos de libertação das colónias portuguesas, com exceção do Brasil e de Timor-Leste, que seguiu um percurso autónomo e posterior.

Nos anos 50, Cabral fundou o MAC – Movimento Anticolonial, em Lisboa, a partir do qual germinaram todas as frentes revolucionárias que viriam a tomar forma: MPLA, FRELIMO, PAIGC. A sua capacidade de articulação e a clareza estratégica culminaram na criação da Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional. Não se limitou a participar: foi quem nomeou, estruturou e deu sentido histórico aos movimentos.

A partir de 1960, liderou a fundação da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), que permitiria unir as forças de libertação lusófonas e obter legitimidade internacional junto de países africanos já independentes. Cabral sabia que a guerra não se ganhava apenas com armas, mas com diplomacia, organização e comunicação.

O Papa, a guerra e o abalo no regime colonial

Em julho de 1970, o Papa Paulo VI recebeu no Vaticano os três principais líderes dos movimentos de libertação africanos – Amílcar Cabral (PAIGC), Agostinho Neto (MPLA) e Marcelino dos Santos (FRELIMO). Este ato simbólico foi um golpe moral contra o regime português, até então legitimado pelo apoio da Igreja Católica.

Para muitos analistas, esse gesto do Vaticano deslegitimou a guerra colonial aos olhos de muitos militares portugueses.Foi nesse momento que se iniciou o declínio espiritual da guerra, que culminaria com o 25 de Abril de 1974. Até então, os destacamentos portugueses tinham capelães militares e apoio logístico abençoado por Lisboa e Roma. Mas após o gesto de Paulo VI, a narrativa da “missão civilizadora” ruiu.

Educação, democracia e originalidade política

Cabral tentou evitar a guerra. Propôs negociações com Portugal, apoiou movimentações democráticas e só depois recorreu à luta armada. Ainda assim, foi mais educador do que guerrilheiro: criou escolas nas matas, alfabetizou combatentes, formou líderes e estruturou territórios sob controlo do PAIGC com saúde, agricultura e organização social.

Recusou alinhar-se cegamente com Moscovo ou Pequim. Era marxista, sim, mas defensor de uma democracia económica, política, social e sobretudo cultural, moldada à realidade africana. Essa visão colocou-o entre os mais respeitados líderes do chamado “terceiro mundo” – ao nível de Thomas Sankara ou Patrice Lumumba.

Guiné-Bissau: independência antes da Revolução

Em 20 de janeiro de 1973, Cabral foi assassinado por dissidentes do próprio PAIGC, em Conacri, Guiné-Conacri, supostamente a mando do regime colonial português. Uma traição interna. Meses depois, a Guiné-Bissau proclamou unilateralmente a independência, sendo reconhecida por mais de 60 países. Foi o primeiro território das colónias portuguesas a consegui-lo – prova do avanço organizativo e internacionalista que Cabral liderou.

Cabo Verde e o sonho binacional

Cabral sonhava com um único Estado com dois territórios – Guiné-Bissau e Cabo Verde, unidos por laços históricos, familiares e culturais. Após o 25 de Abril, esse projeto não se concretizou: as condições geopolíticas e a realidade local ditaram caminhos distintos. Ainda assim, o PAICV – herdeiro cabralista – conduziu Cabo Verde a uma das democracias mais estáveis de África.

É importante reconhecer que Cabo Verde devia ter obtido a independência logo após a revolução portuguesa, tal como a Guiné-Bissau. Mas o processo foi adiado. Cabral, se tivesse vivido, provavelmente teria sido decisivo para concretizar essa visão unificadora.

Um líder da democracia total

O que faz de Amílcar Cabral uma figura singular na história da descolonização é a sua visão integrada de democracia: não apenas política, mas também económica, social e cultural. É esta dimensão que lhe confere um lugar único no pensamento político do século XX.

Foi assassinado por pessoas da sua própria terra, paradoxalmente por estar a lutar pelos seus. É essa dor que torna a sua história ainda mais humana. Um homem que defendia a não-violência quando possível, e que mesmo em guerra, tentava convencer soldados portugueses a depor as armas – e muitos ouviam.

“As pessoas não lutam por ideias abstratas. Elas lutam para viver melhor, em paz, com justiça e dignidade.” -  Amílcar Cabral

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Porque só conhece quem aprende. Porque é preciso recordar para libertar.