Do clamor inglório por Paz

Ou: Já entendemos a guerra; entendamos a Paz

Luis Henrique Beust, janeiro de 2024

 

 

Von Clausewitz afirmou que a guerra é “a continuação da política por outros meios”. NÃO É. A guerra é a destruição da política. A guerra é a destruição da sanidade, a destruição de vidas, a destruição da arte, da beleza, da cultura, dos sonhos, das esperanças; é a destruição da própria humanidade. A guerra destrói lares, escolas, hospitais, teatros, museus, praças e parques. A guerra traz a sede, a fome e a escuridão. A guerra destrói a vida.

Von Clausewitz era um pensador muito mais refinado do que sua famosa frase deixa perceber. Ao contrário dos que seguidamente a citam, conhecia a guerra (esteve em batalha desde os 12 anos de idade), havia estudado Kant, Hegel, Fichte, von Schelling... Foi capaz de contradizer e superar um estrategista tão articulado e proeminente quanto Bernhard von Bülow, chanceler da Alemanha e ministro-presidente da Prússia sob o Imperador Guilherme II, um posto que já havia sido do grande e poderoso Otto von Bismarck.

Von Clausewitz subordinava a guerra à política, e tinha escrúpulos morais em relação a ela, coisa que seus citadores geralmente não entendem ou não querem entender. Ao contrário de von Bülow, Clausewitz não pensava que a guerra era o melhor dos estados para lidar com as diferenças políticas. Lembremos que o antagonismo de von Bülow à França e à Grã-Bretanha foi em muito responsável pela derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.

A política, se tivermos boa-vontade, é a arte de buscar o bem coletivo através da administração justa do contraditório. A política reconhece “Nós” e “Eles”, a guerra quer o império exclusivo do “Nós”.

No centro do “Nós” está o “Eu”, geralmente um ego inflado e monstruoso na ilusão de grandeza que persegue para si e que impõe a todos, um ego alicerçado na insânia de poder e glória.

A política reconhece o contraditório, a guerra quer destruí-lo. A política dialoga com o contraditório e tenta seduzir os seduzidos por ele; a guerra busca exterminar o contraditório e matar todos os que o defendem.

Acreditar que a guerra é “a continuação da política por outros meios” é tão estúpido quanto considerar que o estupro é “a continuação da conquista amorosa por outros meios”. O estupro não é a continuação da sedução por outros meios.

Para se guerrear melhor, leia-se von Clausewitz. Para se conseguir a Paz, é preciso estudar outros. Para se entender a Paz mundial é necessário estudar Einstein e Freud em “Warum Krieg?”, e Norberto Bobbio em “O problema da guerra e as vias da paz”. É preciso ler e seguir os passos de Galtung, Burton e Isard, entre outros bons e grandes. Acima de tudo, é preciso estudar a “Declaração de Sevilha”, da UNESCO, e Shoghi Effendi em “Chamado às Nações”, e a Casa Universal de Justiça em “A Promessa da Paz Mundial”.

A guerra se entende com um microscópio; para se entender a Paz um telescópio é preciso. O microscópio amplifica as coisas minúsculas que estão perto; o telescópio amplifica as coisas gigantes que estão longe. O microscópio ajuda a entender a infinitude das coisas de baixo; o telescópio, a infinitude das de cima. A guerra é coisa terrível e miúda da terra; a Paz é coisa grande e maravilhosa do céu.

Quem quer justificar a guerra vive citando von Clausewitz, como os cruzados viviam citando Jesus: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas a espada” (Mateus 10:34). Não entendem von Clausewitz como não entenderam Jesus.

Quando se tem a ameaça de guerra, ou a guerra mesmo, então se erguem clamores por paz. São geralmente inglórios. Pois os que iniciam a guerra somente escutam seus próprios clamores egoístas de poder e glória (e ouro, claro). E os demais, que fazem a guerra para acabar com a guerra, vão barranco abaixo no rebuliço total do desespero e da ânsia de vitória. Eis a grande tragédia da guerra: para neutralizar o agressor é preciso entrar na arena e lutar com as mesmas armas que ele, pedindo a Deus que a vitória seja dos menos maus.

A paz social, entre homens reais e verdadeiros, não se conquista apenas com conferências, seminários, artigos, frases bonitas, procissões, manifestos e reuniões de oração. Fazem parte, certamente, e podem ser importantes, mas não bastam. Os clamores por paz são geralmente inglórios. Ficam desatendidos. São vozes que pregam no deserto. Se lemos as lições da história, é fácil perceber que a paz somente é alcançada depois de muito sofrimento e dor, de muita desgraça, destruição e morte. Depois de descer aos infernos os homens já não clamam por paz, eles a decretam e estabelecem. Não mais por anseio, mas por necessidade.

A paz é fruto da unidade, e a unidade é fruto da justiça. Construir a paz sem unidade é impossível. Alcançar a unidade sem justiça é impossível. Há mais exigências no caminho da paz do que somente o clamor.

O avanço da unidade e da paz

A longo dos cinco mil anos de história humana, e certamente também na pré-história, a paz sempre foi fruto da superação do desejo de extermínio mútuo. Ou seja, a paz sempre nasceu da unidade: conforme ampliou-se a unidade social, ampliou-se a paz. E isso deu-se lentamente de grau em grau ao longo dos milênios, mas o sentido civilizatório da unidade crescente é indisfarçável. Leia-se — estude-se — Toynbee, Hobsbawm, Huntington, Robert Wright, Rabbani, e outros tantos bons e necessários...

Quando as famílias primitivas deixaram de querer se matar mutuamente e foram capazes de se unir em clãs, a paz se fez entre as famílias. Os clãs se mataram mutuamente até construir entre si a unidade da tribo, e a paz se fez entre os clãs. A guerra entre as tribos acabou quando nasceu entre elas a unidade da cidade-estado, que nada mais é do que muitas tribos vivendo juntas em paz. Foram necessários séculos e séculos para que as cidades-estados eliminassem a guerra entre si e construíssem a paz do estado-nação. A cada novo estágio de unidade social, um novo patamar de paz foi atingido. Esta, em poucas palavras, é a história, a dinâmica e a lógica da paz entre os humanos.

A civilização grega caiu porque as pólis, as poderosas cidades-estados gregas, nunca foram capazes de estabelecer entre si uma unidade que as abrangesse todas. As guerras contínuas entre Esparta, Corinto, Atenas, Tebas, Siracusa, Rodes, Egina, Argos, Erétria, Élis e as cerca de mil pólis que chegaram a existir acabaram por fazer naufragar a Grécia. Viviam todas no mesmo torrão de terra, falavam a mesma e nobre língua, cultuavam os mesmos deuses, tinham os mesmos inimigos externos, mas nunca conseguiram deixar de ser inimigas umas das outras. E caíram todas. Por falta da unidade que as transcendesse e unisse em paz.

As cidades europeias não foram muito diferentes depois da queda do Império Romano. Durante mil anos as guerras entre elas eram contínuas e gerais. Na Itália, por exemplo, Milão, Roma, Florença, Veneza, Nápoles, Pádua, Bolonha, etc., lutaram entre si guerras fratricidas por 14 séculos. Somente com o nascimento da unidade do estado-nação é que a paz se fez entre as cidades-estados. A evolução do grau de unidade trouxe a humanidade ao estágio atual, onde o estado nacional federativo pode talvez ser considerado o modelo mais bem acabado de unidade nacional na liberdade e na justiça. O conceito de nação, se foi tardio na Europa (século XIX), já havia sido construído e consolidado desde o século VII no Islã. Somente muito tardiamente se reconheceu este fato no Ocidente.

E aí estamos hoje: dentro de estados-nação que se antagonizam mutuamente como as famílias, os clãs, as tribos e as pólis se antagonizavam até transcender as barreiras que as separavam e avançar para uma unidade que as unisse. A paz entre cada uma das unidades sociais ao longo da epopeia humana neste pequeno planeta azul sempre se fez quando aquela unidade foi capaz de construir uma unidade maior. A paz das famílias foi o clã; a paz dos clãs foi a tribo; a paz das tribos foi a cidade-estado; a paz das cidades-estados foi o estado-nação...

Não se vê aí uma lógica evolutiva? Não se vislumbra nisso como pode nascer a paz mundial? Einstein o apontou com clareza na carta a Freud, Toynbee o elucidou belamente, Rabbani o descreveu em detalhes, Robert Wright o delineia de forma elegante e sedutora... Os sinais são claros e distintos, mas onde os olhos e os corações que os compreendam? Triste mundo onde vivemos, às vésperas da Terceira Guerra Mundial...

Essa construção de unidades sociais cada vez mais amplas, claro, não foi um processo linear e sereno como parece ao ser enunciado. Nada no avanço humano o é. Houve avanços, retrocessos, luz, sombra, conquistas, derrotas, processos regionalizados, mas o sentido global do processo é hoje em dia muito claro. No geral, o avanço da infraestrutura social (produção, comércio, negócios, etc.) sempre forçou a construção de unidades maiores, que transcendem a unidade da superestrutura social (formas de governo, jurisprudência, educação, etc.). Marx, neste sentido, estava certo.

A forma de ser dos homens sempre os forçou a construir unidades maiores do que as que nasciam do que eles pensavam ser. A natureza humana sempre foi mais forte do que as ideologias. E a natureza humana, e da vida em geral, impulsiona a história sempre para graus mais amplos e complexos de unidade social. A próxima fronteira é o planeta inteiro. Leia-se Marx (A Ideologia Alemã), Toynbee (Estudos de História Contemporânea), e especialmente Robert Wright (Não-Zero) e Shoghi Effendi Rabbani (Chamado às Nações).

A unidade mundial e a paz mundial

É frase muito usada mas pouco seguida: quem não compreende o passado é obrigado a repeti-lo. Se lermos corretamente o passado, a única saída para a paz mundial é a construção de uma unidade supranacional que abarque a Terra inteira. Algum tipo de superestado mundial, não um império, mas um tipo de estado federativo das nações do mundo. Nas palavras de Norberto Bobbio, uma paz de equilíbrio, uma paz de mutualidade; não uma paz de domínio ou de império, não uma paz de derrota ou de esgotamento, mas uma paz entre iguais que se respeitam a ponto de não se quererem destruir.

O Organização das Nações Unidas não consegue ser isso. É um mero clube de nações, onde qualquer um pode cair fora quando quiser para fazer sua guerra particular. Na verdade, é uma Organização das Nações Desunidas, e por isso não consegue garantir a paz, nem minorar os sofrimentos de milhões de pessoas vítimas de guerra, pois as decisões são paralisadas por vetos mútuos decididos em salões com ar condicionado. Enquanto dezenas de milhares sofrem e morrem.

O mundo organizado em uma unidade supranacional, um estado mundial federativo de nações, baseado no direito, na justiça e na liberdade pode parecer uma utopia inalcançável. Não é. É apenas uma necessidade que ainda não foi satisfeita. É a próxima etapa na pacificação da humanidade, a etapa final, quando as benesses da paz se estenderão por todo o planeta. As unidades do clã, da tribo, da cidade-estado e do estado nacional também pareciam utópicas para os que viviam nas unidades tacanhas e paroquiais anteriores, mas eram necessidades humanas, e foram conquistadas eventualmente.

Claro que há vozes contrárias a esta perspectiva, por cegueira ou interesses, mas eventualmente a paz mundial na unidade mundial virá, muito certamente depois de uma hecatombe global bem maior do que as que já testemunhamos. As nações estão armadas até os dentes, os ânimos estão alterados cada vez mais, e os líderes mundiais são voláteis. Não é preciso ser profeta para se ter certeza de que em breve (não dou dois ou três anos para isso) a guerra generalizada outra vez abarcará todos os povos. A Terceira Guerra Mundial.

Uma anedota conta que quando perguntaram a Albert Einstein como ele achava que seria a Terceira Guerra Mundial, ele respondeu que não sabia, mas que a Quarta seria com paus e pedras. A destruição do mundo como o conhecemos está apenas começando. Os armamentos atômicos serão utilizados. Cidades serão dizimadas em segundos. Nações inteiras desaparecerão. Milhões — bilhões — de pessoas serão levadas aos estertores da fome, do frio, do desabrigo, do desespero e da morte. E então, como sempre foi, a humanidade renascerá das cinzas, como a Fênix mítica, e renascerá mais alerta, mais sábia, mais capaz. Talvez para sempre. E então a paz mundial será conquistada definitivamente.

O instrumento da paz mundial

O grande instrumento de paz nas unidades sociais que se sucederam ao longo da história sempre foi a capacidade de todos juntos impedir a agressão de uma das partes. A força de todos juntos impedia a violência das insânias particulares. A paz entre os homens sempre foi estabelecida quando se impunha o temor real a uma ação retaliatória de todos contra um. Esse é o princípio fundamental da paz entre os seres humanos. Talvez não seja entre os anjos, mas nós não somos anjos. A existência de um pacto federativo impede hoje que Florença faça guerra contra Veneza que faça guerra contra Milão que faça guerra contra Roma. Atenas, Esparta, Corinto, Tebas e Siracusa não mais guerreiam entre si porque há um pacto federativo: se uma delas tentar fazer a guerra, o exército nacional — todos juntos — o impedirá. A paz entre os homens vem do idealismo, da boa vontade e do amor, mas também do medo.

O problema da paz mundial é que não se conseguiu ainda — ainda! — construir este tipo de unidade federativa forte, óbvia, explícita, jurada e abrangente. O mundo ainda se articula em grupos regionais ou ideológicos antagônicos, em “eixos”, “ententes”, “pactos”, “organizações”, etc. Não há a garantia de que todos se unirão para impedir a guerra de um. Sempre há os que formam parceria de guerra, por qualquer razão que seja. Não há repúdio nem ofensiva coletiva contra o agressor. E assim a guerra segue sendo uma alternativa. Isso é mais que evidente no conturbado mundo de nossos dias. Se houvesse um pacto universal de paz, se qualquer agressor soubesse que todos juntos o atacariam se ele atacasse, ninguém ousaria levantar um dedo contra quem quer que fosse. A paz dos homens exige unidade na vigilância e na garantia da paz.

Como tão belamente ensinou Carol Dweck, graças a Deus existe entre os seres humanos o poder do “ainda não”, tão bem percebido quando pais e educadores são bons o suficiente: “Mamãe, eu não consigo!”, “Tu ainda não consegues!”; “Papai, eu não sei!”, “Tu ainda não sabes!”; “Professora, eu não entendo!”, “Tu ainda não entendes!”; “Vovô, eu não sou capaz!”, “Tu ainda não és capaz!”... Um problema é apenas uma solução que ainda não foi encontrada. Sempre foi assim, sempre será. O problema da paz mundial é somente isso, com todo o sofrimento e desgraça e horror que isso significa. Mas é somente isso: “ainda não” somos capazes da paz mundial. Mas seremos.

A paz é fruto da unidade, e a unidade é fruto da justiça. Construir a paz sem unidade é impossível. Alcançar a unidade sem justiça é impossível. Para a paz mundial é necessária a unidade mundial. Para a unidade mundial é necessário o império da justiça mundial. Aos trancos e barrancos — muitos trancos e muitos barrancos — a humanidade vai acordar para isso. Já há consciência, como nunca antes, a respeito das injustiças e maldades que afetam o planeta: econômicas, sociais, ideológicas, religiosas, geopolíticas, corporativas, comerciais, culturais... Somos craques em injustiças. Mas é da percepção da injustiça que nasce a justiça. E é da justiça ampliada e disseminada que nasce a unidade. E da unidade ampliada e disseminada nasce a paz. Tão simples e difícil quanto isso.

E nisso estamos, e assim é. Como escreveu o grande João Guimarães Rosa, em sua inigualável obra Grande Sertão: Veredas, colocando na boca do ex-jagunço, ex-guerreiro e ex-violento Riobaldo: ...Se todos passam mão em arma e fecham volta de tiroteio, uns contra os outros, então o mundo se acaba...”

Um clamor inglório por paz... Mas inglório por enquanto. Um dia se verá a glória deste clamor, quando se puser a mão na massa e se deixar de clamar e se começar a agir.