Texto de autoria
A ilusão persistiu durante algum tempo, a ilusão de que a estrada serrana descobrira uma quimera, pois logo soube que a cidade assim desvendada não podia ser outra a não ser… Portimão! Quem diria que a cidade algarvia, com os seus prédios incaracterísticos, feitos para o lazer fútil e para o consumismo demolidor, poderia ter semelhante dimensão mítica, vista, deste modo, por entre os pinheiros de uma serra? Iludida pelo esplendor fantasmagórico, deixei a serra e desci os escassos quilómetros que me separavam da deusa emergente, qual Vénus explodindo no oceano ignoto.
À medida que me aproximava, o encanto dissolvia-se em torrentes de carros fumegantes pelas avenidas, formigando pelos túneis, alastrando por múltiplas rotundas. O encanto diluía-se na proliferação das catedrais do consumo, nos Mac Donald’s e Hipermercados de todos os géneros, nos restaurantes e bares, nos hotéis. O bafo africano transformou a temperatura amena do Atlântico de Aljezur em miasmas múltiplos e heteróclitos de muitas respirações. Desiludida com o subterfúgio, descrente da transfiguração de uma promessa de sonho num cenário cosmopolita de capital urbana, pensei que, ao menos, o mar estava lá, tinha de estar, para além do muro de betão das construções já despojadas da sua aura de milagre.
O mar e a praia, as rochas de cor ferruginosa erguidas sob o azul profundo, essas não teriam sido absolutamente corrompidas pela invasão catastrófica do lazer dos homens. Abafada e em angústia, dei voltas e voltas procurando um lugar de onde ver o prodígio marítimo, um pequeno buraco onde depositar a máquina e sair em busca de outras visões. No entanto, na cidade imensa e resfolegante, não havia um sítio, uma brecha, um pequeno miradouro para espreitar a vastidão! Saturada de ruídos de escapes, da visão alucinada da gente em busca dos prazeres orgiásticos, não vendo, do mar, senão uma pequena tira esbranquiçada subtraída à omnipotência das torres de habitação, voltei costas à cidade e regressei, já ao crepúsculo, e, depois, pela noite estreme, à serra do Espinhaço de Cão e a Aljezur.
Não voltei a contemplar a cidade fantástica depositada no oceano, inocente e plena na distância, perdi de todo a visão mágica e perdi-a duplamente: primeiro, porque me aproximei demais e a realidade estraçalhou o sonho, depois, porque a noite na serra não me permitiu rever a fantasia.
São assim os homens. A beleza – esse conceito humano que não existe, enquanto objecto, mas apenas como ideia acrescentada às coisas – a beleza está lá, pode ver-se, fruir-se, captar-se na orla da pupila ou pela objectiva das máquinas. Mas, quando queremos tocá-la de perto, entendemos que uma mistura cruel de prosaísmo e vulgaridade enfeitou de negritude o que era etéreo! Sei bem que no episódio narrado a culpa foi minha: quis indevidamente devorar aquela beleza, penetrar no sortilégio da cidade encantada depositada numa paleta azul e ouro, quis desvendar o segredo, em cima inviolado, e apressei-me a descer a montanha em busca da sua solução, quis possuir a beleza: e logo que o intentei, ela escapou-se-me entre os dedos.
A Beleza é sempre o Longínquo, longínquo da posse, longínquo da captação, longínquo da necessidade de aproximação. Se tivesse deixado estar o sortilégio assim, à distância, recordaria Portimão como uma Vénus recém-saída da concha parturejante, imaginaria, doravante, que a cidade algarvia com as suas torres e o seu bulício cosmopolita se havia transmutado; ao querer ansiosamente observar de perto a miragem entrevista nos horizontes da Serra desfiz o enleio. E também são assim os homens! Em lugar de permitirmos que o longe permaneça longe, embrumado ou ensolarado e repleto de faíscas milagrosas, apressamo-nos a correr ao seu encontro ansiosos de guardar para nós uma esteira da poalha, derramada e significante, apenas na lonjura!
Esquecemo-nos que a Beleza é "estar ali" submersa nas águas ou pendurada nos céus e que a terra que nos atrevemos a chamar nossa, mesmo não nos pertencendo, amarfanha, por via dessa suposta pertença, o esplendor da refracção, o delírio sublimado, a fantasia dos longes! Queremos conhecer, desesperadamente conhecer; e então, em vez de lua e de luar, esses que nos encantam as noites e nos lançam em arroubos poéticos, ficamos com um planeta estéril, sem atmosfera, sem vida, mero satélite da Terra sem o qual a mesma se desintegraria!
Em vez de estrelas cadentes em noites de estio, estrelas minúsculas que nos encantam em múltiplas cintilações, passamos a ter chuvas de meteoros, de calhaus efervescentes desprovidos de mágica, estilhaçados e em órbita, nas solidões vazias do cosmos! E por aí adiante! O conhecimento mata a poesia, destrói a magia, escalpeliza o uno em fragmentos desprovidos de luz. Foi assim que os gregos inventaram a ciência e depois a filosofia: quebrando o uno primordial, procurando o elemento genésico, reduzindo o todo mítico e coeso à fractura das partes e acabando com um pedaço de cinzas entre os dedos – também eles calcinados!
Sejamos claros: o conhecimento é útil e eu, como muitos, procuro-o e desvendo-o, comungando na ânsia humana de decifração de enigmas; mas existe um limite, uma orla de mistério para além dos quais é pernicioso avançar sob pena de nos encontrarmos face a face com a aridez extrema e com a descrença. Por outro lado, quanto mais avançamos na pesquisa do ignoto, mais nos defrontamos com a vastidão, sempre crescente, do desconhecido e da ignorância: as mais rebuscadas pesquisas científicas da nossa era assemelham-se a brincadeira de crianças por onde perpassa a dúvida, a suposição e a omnipotência da hipótese.
Basta analisar o percurso científico das últimas décadas para entendermos que, em lugar da certeza, temos a dúvida; em lugar da lei, a probabilidade; em lugar da fórmula, a estatística. Poderá esta situação do conhecimento significar que o universo deixou de ser acessível à nossa inteligência humana, a partir de um certo grau de complexidade e de vastidão? Poderá significar que precisamos de ultrapassar a nossa limitação conceptual e de princípios a fim de podermos ver o invisível? Somos nós que nos detivemos num patamar específico de evolução, a partir do qual não poderemos lograr decifrar mais enigmas? Precisaremos de fender a carapaça da nossa auto-suficiência e abrir a mente e o corpo para novas caminhadas? Ou será que, muito simplesmente, o mistério, enquanto tal, continua a ser o horizonte privilegiado da busca humana pelo saber?
Quando penso na minha visão onírica, por entre os pinheiros da Serra do Espinhaço de Cão e na aproximação nefasta da realidade desvendadora e corruptora do sortilégio, parece-me que encontrei a resposta.
Regina Sardoeira