A festa, na verdade se refere aos anos 1920, quando uma grande quantidade de escritores e artistas de diversas partes do mundo moravam e desfrutavam daquela cidade repleta de apelos hedônicos e sensoriais.

Daí para a frente, a retratação dessa icônica cidade como uma eterna festa, se fixou na imaginação de seus frequentadores e atravessou décadas. Acabou ensejando o jornalista nascido no Brasil, o britânico Alan Riding a dar à sua exaustiva pesquisa sobre os anos de ocupação nazista em Paris, o título de A FESTA CONTINUOU, parafraseando Hemingway.

A magnífica crônica do cotidiano que daí resultou demonstrava que, mesmo sob a opressão de uma nação estrangeira, fascista e genocida, a cultura parisiense, representada pelos seus artistas, escritores, jornalistas, cineastas, músicos, dançarinas, dançarinos, cantores, boêmios, cabarés, cinemas, restaurantes e teatros, nunca foi paralisada, sem que com isto pretendamos acusar qualquer espírito de colaboração com o opressor.

Na verdade, este espírito de festa é um espírito cultural. Somente uma cultura forte, atuante, bela, visceral, saída das entranhas do povo, de suas histórias, de suas lutas e de sua alma, cultura que se perpetua como tradição e manifestação incontornável através da arte de seus propagadores, é capaz de transformar uma cidade ou um país num palco permanente de festa.

Nos últimos meses, o Brasil viveu uma situação similar, mesmo que se possa presumir de passageira. Pelo menos ficou claro que se a criatividade de seus artistas, escritores, cineastas e produtores culturais continuarem no ritmo atual, viveremos dias de glória em nossa cultura e, porque não dizer, de alegria e de felicidade para nosso povo. Refiro-me ao extraordinário efeito provocado pelo filme de Walter Salles Júnior, AINDA ESTOU AQUI, estrelado por Fernando Montenegro e Selton Mello. A repercussão mundial, principalmente depois do Oscar concedido ao filme e ao Globo de Ouro concedido a Fernando Torres, ultrapassou nossas espectativas. No plano interno, o interesse pelo filme abriu as comportas de um interesse ainda mais importante, do ponto de vista de nosso processo civilizatório: uma enorme abertura pelo conhecimento de nossa história recente. Milhares de pessoas, que pouco conheciam os anos de chumbo e as atrocidades cometidas pela ditadura civil/militar de 1964/1985, entraram num processo de esclarecimento e desalienação. Ainda é cedo para conhecermos o alcance desse fenômeno.

 Como expressou o grande poeta baiano Florisvaldo Mattos na análise da crônica do poeta e escritor Ruy Espinheira Filho publicada em 20/03/2025 no Jornal A Tarde:  “Aplausos mundiais a um filme, como aconteceu com o vitorioso “AINDA ESTOU AQUI”, significam manifestação em defesa da liberdade e da democracia, contra todas as formas de ditadura.”

Estas manifestações continuam e não parecem que vão parar tão cedo, alimentando novas empreitadas culturais. De repente, o Brasil ficou alegre e orgulhoso. E continua assim. A festa continua. O exemplo dessa crônica do Ruy, que publicamos abaixo, é ainda mais importante pelo seu título singelo: ALEGRIA. Sim, alegria, a simplicidade da alegria que tomou conta de todos nós.  

ALEGRIA

Por RUY ESPINHEIRA FILHO

Escrevi três artigos a partir do impacto do filme “Ainda estou aqui”,

vencedor do Oscar para filmes internacionais. Uma vitória inesquecível. E vitória também para Fernanda Torres, que já havia recebido o Globo de Ouro e ganhara a admiração de multidões em muitas partes do mundo. Principalmente no Brasil, é claro, pois se tornou estrela e musa geral. Na verdade, vitória para todos do filme e para o livro de Marcelo Rubens Paiva que serviu de base para a filmagem. Vitória igualmente para o povo brasileiro, que respondeu nas ruas como se comemorasse mais um ganho de Copa do Mundo. Vi várias cenas maravilhosas pela TV. E se já estava comovido com as imagens dos EUA, senti-me ainda mais comovido e vitorioso.

Há muito não via o povo brasileiro tão alegre, num arrebatamento de provocar lágrimas. Sim, muitos choraram por causa do filme e sua abordagem de uma época que, infelizmente, é muito esquecida. Sim, após a anistia de todos os criminosos, o grande horror foi caindo em esquecimento. O que não pode acontecer e que parece estar voltando a dominar, por exemplo, na Alemanha.

Não, Hitler não pode ser esquecido. Nem Stálin, que foi um ditador sem limites, ordenando perseguições, prisões, torturas e assassinatos. E agredindo toda a cultura que não lhe fosse submissa. Porque, na verdade, o grande inimigo das ditaduras é mesmo a cultura. Porque ela, para existir, precisa de liberdade, de

democracia.

E no Brasil hoje? A turba feroz de extremistas de direita atacando a todo instante cultura e democracia, aproveitando-se principalmente de mentiras insanas que querem impor ao povo. O não é só pela Internet, pois alguns grandes jornais e certas revistas parecem não gostar também de cultura e democracia.

Sim, alguns se acharam muito bem em submissão à ditadura. Sabiam o que estava acontecendo e silenciaram ou até colaboraram com os horrores. Contando até com alguns que deveriam ser mais esclarecidos – como o cronista e teatrólogo Nelson Rodrigues, que em sua coluna perseguia estudantes, intelectuais, padres, todos os que que pareciam contrário aos generais e seus cúmplices. Sim, cúmplices, como ele mesmo foi.

Mas vamos à alegria brasileira. Alegria pela resposta da arte cinematográfica. A alegria que nos últimos tempos parecia eliminada pelos trabalhos diários dos extremistas de direita em ação. Pura palhaçada? Bem, não devemos esquecer que Hitler foi também um grande palhaço, como Charlie Chaplin tão bem denunciou em “O grande ditador”. Sim, palhaço. Palhaço sinistro. Como estes hoje da internet e outros meios de comunicação imundos.

Mas agora vamos ficar com a nossa alegria! E vamos levá-la adiante. Sempre com a mesma determinação: ditadura nunca mais! Nem anistia!!!

(A TARDE, 20/03/2025, p. 3, Opinião).

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