Num mundo em que os desafios sociais, económicos e políticos se entrelaçam, compreender a essência e os limites da desobediência civil é essencial para o fortalecimento das democracias modernas.
Recentemente, em Portugal, assistimos a um exemplo emblemático: 840 profissionais de saúde decidiram não acatar restrições nos cuidados de saúde, alegando que estas violam os princípios éticos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e comprometem o direito universal à saúde. Este ato, embora controverso, levanta questões cruciais sobre o papel do indivíduo na defesa de valores democráticos e sobre a legitimidade da desobediência civil como ferramenta de transformação social.
Historicamente, a desobediência civil tem sido um dos mais poderosos instrumentos de resistência contra a opressão e a injustiça. Quando Gandhi liderou os indianos contra as leis coloniais britânicas ou quando Martin Luther King Jr. se recusou a aceitar a segregação racial nos Estados Unidos, ambos agiram sob a mesma premissa: algumas leis, ainda que legitimadas pelo poder, são intrinsecamente injustas e, portanto, passíveis de desobediência.
Como escreveu Henry David Thoreau, o pai deste conceito, em *Civil Disobedience*:
“Se a injustiça é de tal natureza que exige que sejamos cúmplices dela, então eu digo: quebremos a lei.”
Mas a desobediência civil não é um ato de irresponsabilidade. Pelo contrário, é um compromisso com a verdade e a justiça, exercido por aqueles que acreditam que a consciência individual é a última instância de decisão quando a moralidade se confronta com a legalidade. Em democracias robustas, a desobediência civil funciona como um mecanismo de alerta para a sociedade, um lembrete de que nenhuma estrutura de poder está acima do escrutínio público.
O caso recente dos profissionais de saúde em Portugal destaca um ponto fulcral: até que ponto a obediência a ordens administrativas deve prevalecer sobre o dever ético de proteger vidas? O SNS, enquanto instituição, foi construído sobre valores de solidariedade e universalidade, refletindo o ideal de que a saúde é um direito fundamental e não um privilégio reservado a poucos.
No entanto, crises económicas e pressões políticas têm levado à imposição de restrições que, segundo muitos, minam o espírito do SNS. Os profissionais que desafiaram estas restrições não o fizeram para desestabilizar o sistema, mas para salvaguardar o que consideram ser a essência deste serviço: o acesso equitativo e a qualidade dos cuidados de saúde.
Não podemos ignorar que esta postura de desobediência civil enfrenta críticas. Há quem a veja como uma ameaça à ordem pública ou como um desafio à autoridade legítima do Estado. Mas será que a obediência cega a ordens injustas não representa um risco ainda maior para os valores democráticos? O filósofo alemão Jürgen Habermas, defensor da ética do discurso, argumenta que:
“A legitimidade de uma democracia reside na sua capacidade de incorporar o dissenso como parte do processo político, nunca como ameaça, mas como enriquecimento do debate público.”
O debate sobre a desobediência civil transcende divisões ideológicas entre esquerda e direita. Não é uma questão de preferências políticas, mas de valores universais. Justiça, solidariedade e dignidade não pertencem a um espectro ideológico; pertencem a todos os que acreditam numa sociedade onde a liberdade individual se equilibra com a responsabilidade coletiva.
Aqueles que argumentam contra a desobediência civil frequentemente o fazem com base no receio de que ela conduza à desordem. No entanto, o verdadeiro caos emerge quando os cidadãos perdem a confiança nas instituições e quando o Estado abdica dos seus compromissos éticos fundamentais. A história ensina-nos que grandes avanços sociais — o fim do colonialismo, a conquista dos direitos civis, a igualdade de género — só foram possíveis porque indivíduos comuns desafiaram as normas estabelecidas, recusando-se a ser cúmplices de sistemas injustos.
A desobediência civil, quando guiada por princípios éticos e realizada de forma pacífica, é um ato de cidadania no seu estado mais puro. Ela exige dos indivíduos não apenas coragem, mas uma profunda consciência do impacto das suas ações na comunidade. No caso dos profissionais de saúde portugueses, a sua recusa em aceitar restrições pode ser vista como um grito de alerta para uma sociedade que, na busca por eficiência económica, corre o risco de comprometer os seus valores mais essenciais.
Este episódio convida-nos a refletir sobre a qualidade da nossa democracia e sobre o papel de cada um de nós na sua preservação. Até que ponto estamos dispostos a defender os princípios de justiça e dignidade? E, mais importante, até que ponto estamos preparados para ouvir os que ousam resistir?
Como afirmou Nelson Mandela:
“A coragem não é a ausência de medo — é o triunfo sobre ele. O homem corajoso não é aquele que não sente medo, mas aquele que conquista o medo em nome da justiça.”
Num momento em que os desafios se multiplicam, precisamos de cidadãos e líderes que, como Mandela, Gandhi ou Luther King, compreendam que a verdadeira força de uma democracia reside na capacidade de enfrentar as suas próprias falhas, sempre com os olhos postos num futuro mais justo e solidário.
A desobediência civil é mais do que um direito; é uma responsabilidade em sociedades que aspiram ser livres e justas. No contexto do SNS e para além dele, cabe a cada um de nós decidir como contribuir para a preservação dos valores que fazem da democracia o sistema mais nobre e humanista que a humanidade já concebeu.