Num abril como este, 60 anos atrás, eu estava em Pequim, onde cheguei no dia 5 ou 6, se não me falha a memória.

Tinha, na época, 21 anos, e posso dizer que os oito meses que passei na China foi a experiência mais relevante de minha vida. Levei tempos para compreender com a devida clareza e profundidade certas cenas que presenciei repetidamente durante aquele período, cenas que muitas vezes me pareceram simplórias ou sem maior importância.

Não entendi de imediato porque davam tanta importância a determinados padrões e a que eles levavam. Aos poucos é que fui descobrindo o quanto eu tinha aprendido e iria aprender com eles. 

Nesse ano de 1964 vivia-se o apogeu das chamadas divergências sino-soviéticas. Elas deveriam ter se limitado ao aspecto político-ideológico, e se restringido às relações interpartidárias, sem descambar para as relações de Estado, em particular as econômicas. No entanto, o PCUS as estendeu a todos os âmbitos das relações entre os dois povos, particularmente às relações comerciais. O resultado foi que o campo socialista se dividiu em duas partes no mundo inteiro, muitas vezes com resultados práticos antagônicos.  

No plano econômico, a China haveria de levar um sério empurrão par trás, com o abandono pela URSS dos acordos de cooperação no processo de industrialização do país. Milhares de técnicos soviético de alta qualificação que estavam na China auxiliando a montagem das novas indústrias, particularmente da chamada indústria pesada, retornaram ao seu país, deixando paralisados inumeráveis canteiros de obras nas mais diversas áreas e províncias chinesas. Foi uma desolação, pois tudo ainda estava pela metade. 

A China não se entregou. Mobilizou seus operários e técnicos de norte a sul, de leste a oeste, numa campanha extraordinária para resolver intrincados problemas pendentes, criados pela ausência dos soviéticos. Que não se pense que isso foi tarefa apenas para os engenheiros especializados, cientistas e técnicos de alta formação, que na época não eram tão numerosos assim. Só se conseguiu concluir a gigantesca tarefa com a mobilização de todos os trabalhadores de cada obra. O espírito coletivo imperou. Ninguém era desprezado. Todos tinham alguma contribuição a dar, não só com sua força de trabalho, mas com ideias, inventividade, estudo e buscas criativas de solução. Foi um processo de superação só possível pela força e o empenho coletivo. 

Esta experiência vitoriosa já vinha desde a guerra de libertação e continuou com a criação das “Comunas Populares no campo, desembocando a seguir no processo de industrialização do país. Pode-se dizer que ela é aplicada até os dias de hoje. Não se consegue nada na China sem o uso do princípio do esforço coletivo. Foi com seu emprego que a China chegou ao que é hoje; e que certamente ultrapassará todas as potências do mundo. 

Parecia demasiadamente simples. Acontece que esse empenho coletivo era levado a todas as esferas da sociedade. Lembro-me perfeitamente que, quando visitávamos uma fábrica, não importava o tamanho ou a importância, sempre nos reuníamos com a diretoria para brindar um chá e para longas “trocas de ideia”. Os chineses sempre queriam saber de nossas opiniões e estimulavam nossas críticas ao seu trabalho. Muitas vezes essas reuniões se davam com os próprios operários. Fosse onde fosse, todos eles tinham um caderno de anotações e não deixavam passar nenhuma de nossas opiniões, por mais elementares que fossem. Anotavam tudo. O debate muitas vezes prosseguia sobre o futuro de nossas relações comerciais: como os seus produtos poderiam chegar ao Brasil, se seriam úteis ou não ao país, e o que o Brasil tinha a oferecer à China na mesma área. 

Durante anos e anos agiram assim com os visitantes estrangeiros, de todas as partes do mundo. E não é de se desprezar que tal estratégia tenha trazido conhecimento acumulado, além de raciocínio crítico, mesmo sabendo-se que a China adotava o princípio de basear-se nas próprias forças. Nenhuma observação ou crítica, por mais simples que fosse, era desprezada. Então você descobre que não se tratava apenas de um procedimento cortês e amigável: era pura sabedoria. 

Outro aspecto da sociedade chinesa pós-revolução socialista, era a questão do “amor ao povo”. Se o povo não é amado, como construir uma sociedade forte e igualitária? Como exigir sua participação e mobilização nessa gigantesca tarefa de transformar uma sociedade feudal num país moderno e progressista? A política que guiou o PCCh nos anos de transformação foi sempre a de construir o novo país para usufruto do povo e não de uma minoria privilegiada. Eis porque a Revolução Cultural teve enorme papel nesse processo, apesar de que, na sua evolução, tenha sido aproveitada por uma quadrilha de dogmáticos ideológicos que só trouxe danos ao país. Quadrilha esta que foi desbaratada por veteranos dirigentes comprometidos com o verdadeiro sentido da revolução chinesa, sob o comando de Deng Xiaoping. 

Algumas das ideias da Revolução Cultural tiveram uma importância fundamental no sentido de forjar a consciência socialista das massas e do Partido. A principal foi a de que todo dirigente do Partido e do Estado, não importava em que escalão estivesse, tinha a obrigação de passar algum tempo trabalhando em convívio com o povo pobre, principalmente nas Comunas Populares, como se fosse um deles, para poder conhecer profundamente as suas necessidades, os seus sentimentos e as suas aspirações, forjando assim os vínculos amorosos com o povo trabalhador e auto combatendo o individualismo. É por isso que, mesmo com o advento posterior de medidas tipicamente capitalistas na economia, ou pelo menos da chamadaeconomia de mercado” que passou a nortear a China, ela nunca se corrompeu nem correu o risco de se bandear para um capitalismo neoliberal e selvagem. E nem corre, por um fator muito simples: os capitalistas chineses não têm nenhuma ingerência no poder e nas políticas do Estado, detidas com mãos firmes pelo PCCh. 

A última lição que me recordo de ter recebido na China foi a da paciência. Não é à-toa que se fala tanto de “paciência chinesa”, quando se quer narrar uma história de perseverança e da criação lenta de uma oportunidade de ação. Aliás, desde o começo da Guerra de Libertação Nacional e da criação do Exército Popular de Libertação, que Mao Tse-Tung se utilizou do concito de paciência, para traçar a sua linha militar, expressa principalmente na sua obra Sobre a Guerra Prolongada. Numa guerra, não se pode vencer todas as batalhas. O importante é não desistir diante das eventuais derrotas. Nisso consiste a paciência: se reagrupar, se rearmar, se fortalecer e voltar a atacar. Sempre, até a vitória final, mesmo que seja daqui a 28 anos, tempo que durou o processo de luta armada na China. A lógica do inimigo poderia ser descrita assim: ganhar todas as batalhas possíveis, até a derrota final. A do EPL era perder tantas batalhas quantas não fossem possível vencer, até a vitória final. 

Esta lógica foi a mesma aplicada na construção do socialismo. Não é de um dia para o outro que se consegue atingir os objetivos traçados. É preciso paciência e persistência no processo de construção. Não se chega a nenhum lugar sem dar o primeiro passo. E é isso que a China vem fazendo, adotando políticas bem elaboradas coletivamente, para alcançar, sem vexame, etapa por etapa, os objetivos planejados. O exemplo de paciência e de persistência que a China tem tido com Trumpé suficiente para deixá-lo sumamente aborrecido, cheio de caretas e tiques. 

Apesar de ainda haver pobreza em algumas regiões da China, o povo chinês não passa necessidades. Embora numerosas fábricas paguem salários muito aquém daqueles que se pagam nas grandes empresas capitalistas americanas, o povo é compensado com muitos bens adicionais, fundamentais na sua sobrevivência, os quais simplesmente não prosperam de acordo com as necessidades reais no mundo ocidental: moradia, educação, saúde, transporte e lazer gratuitos ou de baixo custo, o que permite ao povo viver dignamente. 

Vemos agora um salto qualitativo tão forte na sociedade chinesa que está abalando os sonhos do império norte-americano. Não é por outro motivo que Donald Trump não dorme sem pensar em “retaliar” a China, a dizer ingenuamente aos quatro ventos: “Vocês não têm o direito de crescer como estão crescendo. Vocês não têm o direito de ser maiores do que os Estados Unidos”. Eis aí uma vociferação inútil e desesperada. 

O já famoso tarifaço de Trump tem como objetivo, segundo ele, a eliminação do deficit comercial dos Estados Unidos, fruto de tratamento injusto a que o país estaria submetido por seus parceiros comerciais. A culpa de tudo seria da China e não das contradições internas da mais forte economia do mundo. Então, é preciso atacar a China em todas as frentes. Ela precisa ser contida. Se não for, será humilhante para os Estados unidos admitir, já em 2030, que existe uma nação mais forte do que aquela que ele já se diz dono. 

Quando eu estava na China, o slogan político-ideológico mais recorrente no país era: “O imperialismo é um tigre de papel”. Sabem que este slogan teve um papel extraordinário? Pois sim: armou o povo chinês. Em certo sentido ele foi o responsável pela China não ser atacada nos primeiros 20 anos após a vitória da revolução chinesa. A China dizia: “Venham! Estamos prontos para recebê-los!” Os Estados Unidos, o grande ameaçador, não foram. Não eram bobos. Seriam comidos pelos 750 milhões de chineses. 

O imbecil do Kruschev, discordando daquela metáfora corajosa e necessária naquele momento histórico, retrucava: “Mas o tigre tem dentes atômicos!” Para que esta frase tão infeliz, ainda mais de um homem que tinha um passado glorioso, agora encorajando injustificadamente a arrogância imperialista? Pois bem, a China poderia perfeitamente retomar, hoje, esta velha consigna. Não passa pela cabeça de ninguém a hipótese dos Estados Unidos atacarem militarmente a China, mas, por via das dúvidas, já que o império é comandado por um psicopata… Bem, afinal, a China também já tem “dentes atômicos”, assim como o maior exército do mundo, muito bem armado. Mas tudo para se defender. Porque não é do feitio da China atacar nenhum país, como reconheceu o ex-presidente Jimmy Carter, afirmando ser essa uma das razões do atual poderio chinês. 

Alguns articulistas com pouco conhecimento da realidade chinesa têm descrito o aumento de seu poderio e de sua provável chegada ao topo da maior economia do mundo, como algo natural, quase corriqueiro, uma espécie de fenômeno que ocorre no mundo de tempos em tempos, e que vem se repetindo desde antes do Império Romano. Um país sobe, outro, desce, assim sucessivamente. Esta posição de supremaciateria sido ocupada pela própria China, no Século XV, pela Espanha, pela Holanda, pelo Reino Unido e, por último, pelos Estados Unidos, só para citar alguns exemplos. Acontece que a situação atual é diferente e não permite que se aplique este raciocínio simplista de determinismo histórico. A razão porque as nações viviam o seu apogeu e, posteriormente, o seu declínio, estava nas constantes guerras e pilhagens que promoviam, nem sempre com resultados favoráveis. Mas a China não pretende atacar nenhum país, como nunca atacou. O que a China propõe é o multilateralismo, nova modalidade de convívio internacional em que todos podem crescer e colaborar entre si, erradicando para sempre o velho “chauvinismo de grande potência”. 

Recentemente, o mundo amanheceu assombrado com o surgimento do DeepSeek, o modelo de inteligência artificial que se mostrou superior e mais barato que a joia do império americano, o ChatGPT. A China está na vanguarda de inúmeras áreas científicas de pesquiza, particularmente no ramo químico e de ciências biológicas e de saúde, e é o maior produtor de artigos científicos, num momento em que as Universidades americanas e seus órgãos de pesquisa são atacados pelo governo, perdendo verbas e incentivos. Já as universidades chineses vêm num crescendo de qualidade quase insuperável, com os incentivos e os estímulos do governo chinês, que percebe se situar ali o futuro do país. Na área militar a China praticamente já conseguiu se equiparar aos Estados Unidos em quase todos os tipos de armamentos: terrestres, aéreos e marítimos. O país promete para este ano um crescimento mínimo de 5%, enquanto os Estados Unidos vivem sob a ameaça de uma possível recessão.  

Então, Sr. Trump, não adianta bufar como um boi bravo, que o dragão chinês não está nem aí para você. Dia a dia, passo a passo, pacientemente, ele chegará lá. Não precisa de suas benesses.