Perda na Literatura Portuguesa: Nuno Júdice e o Fim de uma Era

Num triste entardecer de domingo, 17 de março, o panorama literário português viu-se envolto numa sombra de luto e pesar. Nuno Júdice, vulto maior da poesia, ensaio, e narrativa contemporâneos, despediu-se do mundo, vítima de cancro, deixando um legado que transcende as barreiras do tempo e do espaço. A notícia, veiculada pela família, mergulhou o país e os admiradores da sua obra num profundo estado de consternação.

Nascido em 1949, na Mexilhoeira Grande, Portimão, no coração do Algarve, Nuno Júdice granjeou, ao longo dos anos, um lugar de destaque no panteão dos grandes mestres da literatura de língua portuguesa. A sua carreira multifacetada como poeta, ensaísta, romancista e professor universitário ilustra a versatilidade de um espírito inquieto e prodigiosamente criativo.

Figura central no panorama cultural português, Júdice assumiu papéis de relevo, tais como o de director da prestigiada revista Colóquio/Letras, e o de membro do Conselho de Curadores da Fundação Saramago, evidenciando o seu compromisso inabalável com a promoção e disseminação da literatura e do pensamento crítico.

A sua obra, uma imponente coleção que soma mais de 80 títulos, entre contos, romances e ensaios, é um testemunho eloquente da sua capacidade de navegar por diversos géneros literários, explorando a condição humana, o amor, a memória e a finitude com uma sensibilidade e profundidade raras. Cada palavra, cada verso, cada narrativa de Júdice é um convite à reflexão, um mergulho nas profundezas da alma e um olhar atento sobre as nuances da existência.

O legado de Nuno Júdice é um farol que ilumina não só o caminho para as futuras gerações de escritores e leitores, mas também oferece um espelho onde podemos vislumbrar os contornos da nossa própria humanidade. Em sua obra, encontramos um diálogo constante com as grandes questões da vida, um diálogo que, mesmo após o seu adeus, continua a ecoar, a inspirar, e a desafiar.

Hoje, enquanto o país se despede de uma das suas mais brilhantes estrelas literárias, resta-nos a certeza de que, embora Nuno Júdice tenha partido, a sua voz permanecerá viva e pulsante nas páginas que deixou para trás. A sua poesia, os seus ensaios, as suas narrativas são agora documentos de uma sensibilidade única, testemunhos de uma vida dedicada à arte das palavras.

Neste momento de perda, recordamos as palavras de Fernando Pessoa: "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena." Nuno Júdice, com a sua vasta obra e com o seu imenso contributo para a literatura e cultura portuguesas, demonstrou que a sua alma era, de facto, imensa. E é essa imensidão que hoje celebramos, mesmo entre lágrimas, pois sabemos que o seu legado será eterno, um farol de humanidade, sensibilidade e beleza numa época de constantes transformações.

Descansa em paz, Nuno Júdice, e que as tuas palavras continuem a ser um bálsamo, um desafio e um convite à descoberta para todos aqueles que buscam na literatura o sentido mais profundo da existência.

E deixamos aqui um seu poema!

Mar

No inverno, as praias desertas enchem-se de espuma
e de gaivotas. Ouço o rebentar das ondas contra a falésia;
e respiro o ar salgado com a impressão luminosa
da manhã. À noite, esta imagem transforma-se
numa simples memória: e colo-a ao vidro da alma
para não me esquecer do que vi, sabendo que um
dia a poderei usar, no poema, onde o mar se irá
transformar nesta imagem que guardei, numa
manhã de inverno.
Porém, não ouço no fundo das palavras
a rebentação da maré; nem respiro, por entre
os versos, o frio húmido de um litoral onde aprendi
as cores exactas da manhã. O poema não passa de
um mapa onde acompanho, na linha dos substantivos,
a corrente do mundo, e imagino, na mancha
de cada adjectivo, a forma das paisagens. E desfolho
as estrofes numa viagem abstracta, em busca
das grandes praias da vida.
Mas o mar continua colado ao vidro
da minha alma, embaciando o que escrevo
com o seu ritmo matinal.
Nuno Júdice