Sou admirador incondicional da Costa Rica, único país da América Latina – não sei se do mundo -- que extinguiu suas Forças Armadas. Com a economia que faz ao deixar de comprar caças, bombardeiros, tanques, canhões, mísseis, fuzis e granadas, para não falar de uma enorme quantidade de outros artefatos bélicos necessários ao funcionamento de um exército moderno, pode concentrar recursos em ações pelo bem-estar do seu povo.

Para que servem forças armadas senão para fazer a guerra? E por que é necessário fazer a guerra?

Diz-se que forças armadas são indispensáveis para defender um país. Defender de que ou de quem? Ah, de possíveis agressores. Mas, pergunto, quem iria agredir a Costa Rica, um país pacífico que só busca a paz, o progresso e a felicidade de seu povo?

Lamentavelmente, o argumento acima não pode ser usado indistintamente. Há muitos países, sim, que correm risco de agressão e precisam de forças armadas para se defender. Isto porque existem outros países cuja história é uma sucessão de agressões a seus vizinhos e mesmo a nações distantes, com vistas a se apossarem de suas riquezas edominarem vastas áreas do globo terrestre, em função de seus interesses econômicos e geopolíticos. O que podem fazer os países ameaçados senão se levantarem em armas? A história da colonização dos povos africanos e asiáticos é um exemplo irrefutável desse ameaça, que continua presente em nossos dias, apesar de o processo de descolonização já ter chegado a níveis avançados. Mas os países imperialistas encontraram nos dias atuais outros meios de colocar em prática sua obsessão dominadora. Primeiro foi com as artimanhas do neocolonialismo; hoje através do controle dos sistemas e mecanismosfinanceiros globais, que amarram os países periféricos pelos pés e as mãos.

Mas não tenho, neste artigo, a intenção de me estender sobre o tema do imperialismo. O que me move é a atuação das Forças Armadas na política interna de cada país, particularmente no Brasil e em Portugal.

A tradição das Forças Armadas latino-americanas é de intervirem na política interna para destituírem governos eleitos democraticamente e implantarem ditaduras, que tantos males têm causado à democracia do continente. Pode-se dizer, de uma forma geral, que as Forças Armadas dos países latino-americanos nunca foram democráticas, nunca se submeteram totalmente ao poder político democraticamente instituído; ao contrário, sua história tem um viés golpista de longo curso. Em raras ocasiões se pode constatar uma postura democrática e libertária dos militares. Isto ocorreu porque elas sempre enxergaram no próprio povo do país o seu maior inimigo, e não os países imperialistasagressores, nem mesmo alguns vizinhos expansionistas. A tese da existência do inimigo interno sempre foi o cerne da famigerada Doutrina de Segurança Nacional, que amordaçou por tantos anos os nossos povos. De modo que, enquanto esta mentalidade não for abolida dentro das Forças Armadas latino-americanas e de outros países mundoafora, será impossível se alcançar uma verdadeira e sólida democracia em âmbito mundial.

Em virtude da aproximação das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, seria oportuno confrontar os dois exércitos que conhecemos de perto, pelas condições históricas em que nos situamos, de habitantes de países de língua e de cultura portuguesas: as Forças Armadas do Brasil e as Forças Armadas de Portugal.

Ninguém pode afirmar que as Forças Armadas brasileiras tiveram uma história gloriosa. Na verdade, na quase totalidade de suas intervenções, causaram mais danos ao país do que benefícios. São toleradas e obdecidas porque são poderosas e muito pouco influenciáveis em sua postura inflexível. Mal respeitam os princípios democráticos do país. Qualquer ameaça de mudança política que não esteja nos contornos de sua doutrina, sustentadas também por outras poderosas forças internacionais, é motivo parase levantarem e usarem da violência armada para impedir que ela se efetive. E o fazem da forma mais abominável que se possa imaginar.

No pós-guerra, desde 1945/46, formou-se dentro das Forças Armadas brasileiras, um grupo especial de militares de alta patente que passou a se reunir na Escola Superior de Guerra e traçou um programa estratégico de governo e de domínio da nação, certos de que, na primeira chance, assaltariam o poder e incrementariam seus planos. Tinham nacabeça os generais Golbery do Couto e Silva, Castelo Branco, os irmãos Geisel, Odílio Denys, Lira Tavares e alguns almirantes e brigadeiros, e eram conhecidos como Grupo da Sorbonne. De 1945 até 1964 não fizeram outra coisa senão conspirar para derrubar o governo vigente e assaltar o poder. Foram numerosas suas tentativas de golpe de Estado, a maioria delas abortadas, ora pela resistência popular, ora pela atuação de militares de oposição, democratas e nacionalistas, que ainda existiam dentro das Forças Armadasdesse período. Em março/abril de 1964, finalmente, lograram sair vitoriosos, com a derrubada do presidente legítimo João Goulart e a ascensão do general Castelo Brancoao poder. A primeira coisa que o grupo da Sorbonne fez depois disso, foi “limpar as Forças Armadas de todos os elementos comprometidos com a democracia e a legalidade, em particular os nacionalistas e os de esquerda, “purificandoassim a área militar, e livrando-a daqueles que se constituíssem em empecilho para seus projetos nefastos. Com isso, um grupo ainda mais à direita, chefiado por Costa e Silva, conseguiu atropelar os planos do Grupo da Sorbonne, que se recuperou sete anos depois, com a ascensão de Geisel. Apesar da oscilação entre a “linha flexível” (Grupo da Sorbonne) e a “linha dura” (Costa e Silva, Médici e outros), as Forças Armadas brasileiras foram aos poucos sendofascistizadasprofissionalmente, e até hoje, 2024,60 anos depois, continuam uma escola viva da ideologia de extrema-direita.

As Forças Armadas portuguesas tiveram, no passado, uma performance semelhante.Serviram a uma ditadura fascista que durou 41 anos. Sustentaram a ferro e fogo oregime autoritário e autocrata de Salazar. Mantiveram sob domínio as colônias portuguesas na África, o que implicava no uso permanente da violência, da opressão e do terror contra os colonizados. Com o desenvolvimento das lutas de libertação nacional que marcaram o pós-guerra e a consequente conquista da independência de um sem-número de países, os militares portugueses foram tomando consciência de que seu papel opressor e dominador não tinha mais lugar no mundo. E começaram a conspirar, não só contra o domínio das colônias de Portugal como, sobretudo, contra o domínio da população interna através do terror e da tortura, que eram comandadas pela execrávelPIDE, órgão de repressão política sob seu domínio.

Nos dez anos que vão de 1964 a 1974, a primeira dessas Forças Armadas regrediu continuamente à condição de opressora, de apologista da ditadura e de insufladora dainfâmia e do ódio, enquanto a outra seguiu um caminho oposto, numa busca incansável pela democracia e pela liberdade. São dois caminhos que se chocam, que se contradizem, que destoam um do ouro nos dois territórios, que tinham tudo para seguir caminhos paralelos e semelhantes.

Se há uma coisa que as Forças Armadas do Brasil precisam aprender de sua congênere portuguesa é que o inimigo não está dentro do país, mas fora dele, quando existe. E se o inimigo não lhe ataca, nunca precisará usar das armas para se levantar em guerra. Umdia, poderá também vir a abandoná-las, como o fez a Costa Rica.

Outra lição do 25 de abril, provado nestes 50 anos, é que a democracia é sempre melhor do que a ditadura, é sempre superior aos regimes de opressão. No Brasil de hoje ainda há milhares de pessoas sonhando com a tirania, instigadas exatamente pelos militares saudosistas da ditadura implantada em 1964, que penalizou durante 21 anos o povobrasileiro. Essa gente não aprendeu nada. Por culpa quase que exclusiva dos militares.

A terceira lição é que as armas nem sempre precisam ser usadas. Não é à-toa que o símbolo do 25 de abril, seja um cravo vermelho. Este símbolo teve um papel extraordinário, ganhando milhões de corações, ao lado da canção de Zeca Afonso, Grândola, Vila Morena, que empolgou multidões, exortando o nascimento de uma terra de liberdade. Pelo que consta, apenas 4 pessoas morreram durante a ação revolucionáriado Movimento das Forças Armadas (MFA), cujo espírito ainda guia o país. No Brasil,ao contrário, a extrema direita mostrou que ainda tem planos de desfechar um golpe de Estado sob a mira dos fuzis. Tanto que transformou uma mão em forma de arma no símbolo do movimento que levou Bolsonaro ao governo. E, findo este, tentou a todo custo atropelar a democracia, impedindo a posse de Lula, o novo eleito, e, logo a seguir,derrubá-lo, como ficou demonstrado na invasão e vandalização das sedes dos três poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023. Durante todo o percurso de domínio dobolsonarismo no Brasil morreram dezenas de vezes mais pessoas, vítimas do ódio e da intolerância, do que nos dias da vitoriosa Revolução dos Cravos.

Está na hora de o Brasil aprender com a história portuguesa e seguir o caminho de abril de 1974 e não o de abril de 1964. Contra a guerra e em defesa da paz, fascismo nunca mais!

Paulo Martins

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Foto de destaque: IA;  imagem ilustrativa  representando a contraposição entre uma cena pacífica e uma cena militar, simbolizando as diferentes abordagens de defesa nacional entre a Costa Rica e o Brasil.