Temos de concordar que, em paralelo com as gravíssimas dificuldades mais de um terço dos portugueses enfrenta, há todo um universo composto por empresários e dirigentes políticos que navegam em águas atoladiças de onde extraem avultadíssimos proveitos, sem que até hoje a justiça tenha sido capaz de estabelecer com a comunidade uma relação de confiança quanto a este tão imperioso combate.

Parece que a Justiça se contenta em substituir os media pelos tribunais, com gravíssimos prejuízos em todos os azimutes.


À justiça não basta anunciar detenções de altos dirigentes governamentais, municipais ou empresariais. Se se quedar por este arremesso e deixar o tempo corromper e afundar o estardalhaço comunicacional, afunda-se na sociedade a confiança no sistema. 

Não é totalmente verdadeira a frase de António Costa quando José Sócrates foi detido – À justiça o que é da justiça, à política o que é da política – na medida em que a justiça é produto da política governamental, ou seja, a independência dos juízes e a autonomia do MP são pedras basilares do edifício da Justiça, mas a justiça não é só “isso”. A Justiça é o resultado de opções políticas que visam estruturar um sistema de relações económicas, comerciais, criminais, familiares, sociais e outras que asseguram a paz social onde os cidadãos vivam. Sendo humana será sempre imperfeita, mas nunca separadas das condições em que se insere e atua.

Quando um governo é derrubado porque um comunicado da PGR refere num último parágrafo que Costa é referenciado em escutas telefónicas e quando o PR, ilustre professor de Direito Constitucional, o aceita com olímpica naturalidade, estamos perante uma monstruosa aberração jurídica e política.
Independentemente do valor probatório de escutas em que os escutados se referem a terceiros invocando proximidades e decisões à la carte, exigem um escrutínio rigoroso sempre e muito mais quando se está perante um primeiro-ministro. Só por  requintada leviandade ou pura perversão se incluiria um parágrafo daquela matriz num comunicado como o da PGR, pois, como se viu, abriu-se uma crise política cujos efeitos são para já desconhecidos e cujas consequências podem ser devastadoras para o regime democrático precisamente muito perto do seu cinquentenário.

Uma investigação criminal nunca pode ser cega e não deve parar diante de quem quer que seja, mas tendo em conta o impacto político, económico e social quando há terceiros que se referem ao primeiro-ministro é imperioso prosseguir e simultaneamente pesar até que ponto o descoberto é suficiente para ser revelado, tendo a consciência de que um passo deste calibre pode ter consequências catastróficas para toda a comunidade e até internacionais.

As meras referências a António Costa ao serem tornadas públicas não podiam deixar de ter um efeito de uma bomba atómica, pois tornaram a ação política do mesmo inviável, quer se demitisse, quer o não fizesse.

Ao assumir o parágrafo assassino a PGR/MP decretou a morte do governo de António Costa suportado por uma maioria absoluta.

O MP não pode ignorar que ao revelar o que noticiou atirou para o limbo político um político que é primeiro-ministro e que, pelo andamento do processo no STJ em conexão com o outro processo dos outros arguidos, passarão anos e anos para se poder saber exatamente se as suspeitas eram fundadas.
Qualquer justificação em falta de meios não faz sentido, pois os Digníssimos Procuradores bem conhecem os meios e, portanto, apesar disso deram o passo para a falta de meios… para o abismo democrático.
Não há independência de qualquer procurador que justifique este grau de irresponsabilidade, pois isto é tudo menos independência, esta exige um elevado grau de responsabilidade na medida em que independência impõe responsabilidade. Trata-se de mero desaforo. Só uma corporação sem rei, nem roque pode atrever-se a semelhante despautério.

E só um Presidente da República norteado por um espírito vingativo e com o tal sonho, que tornou público, de ver um governo de centro/direita, como lhe chamou, pode justificar esta loucura jurídica, bem sabendo todos os que a perfilharam que António Costa e o governo ficavam sem chão e que não tinham como se defender dada a natureza e a envolvência temporal da suspeição.

 

No meio de santa pobreza intelectual há anos que o PR inventou um novo regime no país, subvertendo o que resulta da CRP. As eleições em Portugal não têm como finalidade escolher um primeiro-ministro, mas sim eleger deputados, que por sua vez estabelecem uma maioria que irá dentro de si escolher o primeiro-ministro independentemente de cada partido em campanha eleitoral indicar, quem do seu partido eleito deputado, poderá ser o primeiro-ministro. Na Europa ocidental muitas aconteceu o primeiro-ministro não ser o do partido mais votado.

 

Marcelo Rebelo de Sousa com desplante decidiu (em substituição do parlamento) derrubar o governo e convocar eleições, cumprindo um passo do seu sonho.

Não está em causa a investigação, mas o facto de levar à irresponsabilidade de atribuir publicamente a suspeição do primeiro-ministro, sem ter cuidado de investigar se essa suspeita estava ancorada em factos que de modo substancial a tornavam mais ou menos sólida.

Ao fazê-lo afundou ainda mais a confiança na Justiça, pois seja qual for o resultado da investigação, ela carrega o fardo de ter derrubado um governo com maioria parlamentar absoluta, antes de serem seguros os elementos dessa suspeição.
Ao fazê-lo, deste modo, para uma parte bem significativa da população portuguesa, interveio politicamente para afastar o governo de A.C.
Ao fazê-lo mostrou que, em vez de se conduzir num processo desta envergadura não usou a prudência e bom senso institucionais e enveredou por uma lógica de escandalizar o país ateando-o de chamas bem altas o alarme social.

O futuro que vier a ser escrito ficará para sempre contaminado por esta irresponsabilidade, sem possibilidade de António Costa se defender.

Domingos Lopes

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