O RECENTE EPISÓDIO no Parlamento Europeu, com alguns deputados da esquerda a cantarem a “Bella Ciao” depois da intervenção de Viktor Orbán, suscitou-me algumas perplexidades quando a Presidente do Parlamento interveio, durante o canto, para dizer que o PE não era a Eurovisão e que o gesto mais parecia “La Casa de Papel”, a série televisiva adquirida pela Netflix, que integra, como fundo musical, a “Bella Ciao”. 

Esta intervenção de Roberta Metsola suscitou-me uma dúvida que, a confirmar-se, representaria uma falha grave de quem ocupa tão alto cargo institucional na União Europeia. Saberá Metsola que a belíssima canção “Bella Ciao” era um canto da resistência italiana contra o fascismo de Mussolini?

E, sabendo, faz algum sentido comparar o gesto dos deputados a “La Casa de Papel”, ultrajando dessa forma a resistência italiana e até a própria beleza da canção, designadamente a da própria letra? “La Casa de Papel” trata de assaltos a bancos, enquanto “Bella Ciao” representa a luta contra o fascismo e o invasor, a luta de um povo pela liberdade. A senhora poderia muito bem ter ouvido, ter dito que um canto tão belo, na música e no conteúdo, no PE seria sempre sinónimo de alegria e de liberdade, vista a função do Parlamento e a diversidade de valores e visões do mundo nele presente. Expressá-la através da música, ainda por cima bela, não deveria constituir motivo de desagrado presidencial.  Mas não, a senhora Presidente preferiu ignorar o hino da resistência italiana, degradando-o a uma qualquer casa de papel ou a um medíocre festival da canção. Intencionalmente ou por ignorância. Não acreditando, todavia, que tenha sido intencional, resta-me ficar convencido que a senhora Roberta Metsola Tedesco Triccas julga mesmo que “Bella Ciao” é somente uma das músicas originais de “La Casa de Papel”. O que, confesso, é espantoso para uma senhora natural de Malta e que tem no seu nome as palavras italianas “Roberta” e “Tedesco”. O que é curioso é que, sem saber o que estaria para acontecer nessa quarta-feira, eu publiquei aqui, nesse mesmo dia, um artigo sobre António Gramsci na prisão fascista de Mussolini. Curiosas coincidências.  Mas para que se entenda melhor a minha perplexidade, que é também estética, além de moral,  aqui deixo a letra de “Bella Ciao”:

«Una mattina mi son svegliato,
oh bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Una mattina mi son svegliato
e ho trovato l’invasor.

O partigiano, portami via,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano, portami via,
ché mi sento di morir.

E se io muoio da partigiano,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E se io muoio da partigiano,
tu mi devi seppellir.

E seppellire lassù in montagna,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire lassù in montagna
sotto l’ombra di un bel fior.

E le genti che passeranno
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E le genti che passeranno
Ti diranno «Che bel fior!»

«È questo il fiore del partigiano»,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
«È questo il fiore del partigiano
morto per la libertà!»

Uma letra destas, o contexto histórico em que era cantada e o próprio gesto – cantar – deveriam ter motivado a senhora Metsola, caso soubesse do que se tratava, a ter cuidado com os comentários que fizesse a propósito do gesto dos eurodeputados. Mas não. Infelizmente.

2.

As presidenciais americanas de Novembro assumem um relevo excepcional não só por se tratar da maior potência mundial, mas também, por um lado, pelo estado actual da política internacional, com duas situações altamente explosivas, na Ucrânia e no Médio Oriente, e, por outro, por um dos contendores, Donald Trump, representar o que há de mais regressivo na política, representando o que já aqui designei por “plutopopulismo”. Um desbragado “plutopopulismo” sem limites na linguagem e nas referências caluniosas à sua adversária. Basta pensar que não aceitou a derrota, oficialmente reconhecida, nas eleições de 2020 e que, ao que parece, patrocinou o assalto ao Capitólio. Kamala Harris mantém uma dianteira de cerca de três pontos, mas nos swing states verifica-se um empate. Além disso, o radicalismo da campanha de Trump tem agora um novo intérprete, o senhor Elon Musk, que considera Kamala Harris, candidata e actual Vice-Presidente dos Estados Unidos, comunista e extremista, utilizando a sua rede social X/Twitter para alimentar a campanha de Trump. Uma conta, a de Musk, no X,  com 200,8  milhões de seguidores (Le Monde, 11.10.2024, p. 19). Não sei se alguém já se tinha apercebido de que os Estados Unidos têm sido governados, desde 2021, por uma Vice-Presidente comunista. Nada menos. Sinceramente, vem-me vontade de perguntar aos comunistas o que pensam da declaração de Musk sobre Kamala Harris. Mais palavras para quê?

3.

A ditadura do senhor Maduro prossegue com uma estratégia semelhante à que utilizou com Juan Guaidó: a de uso do tempo a seu favor e da saída do caso Venezuela da agenda política internacional quer por “cansaço” e esgotamento noticioso quer pela emergência de outros temas, que passem a dominar a agenda política internacional. E os temas não faltam. Com as costas guardadas pelos generais das forças armadas, que fazem parte orgânica e interessada do poder de Maduro, acabará por ver firmar-se um silêncio que favorecerá a sua permanência no poder, ainda por cima com o vencedor das eleições (parece não haver dúvidas disso, uma vez que o regime, ao contrário da oposição, não consegue demonstrar que ganhou) exilado em Espanha, país que parece ter-se agora convertido no seu inimigo externo, com a Assembleia Nacional a propor a Maduro um corte total de relações com Espanha. Só falta mesmo inventar umas Malvinas venezuelanas para completar a estratégia. As ditaduras sempre precisaram de um inimigo (não adversário) externo, além do interno, que aparece sempre como uma projecção, por infiltração, do inimigo externo. Na Venezuela, o partido bolivariano parece estar destinado a identificar-se eternamente com o Volksgeist venezuelano… para sempre ou até quando os generais acharem que Maduro já não consegue exibir legitimidade suficiente para defender os seus (deles) interesses.

4.

Em França continua o processo de afirmação da direita através de um pacto de estabilidade do governo Barnier com o Rassemblement National (RN), que já se traduziu em nomeações na Assembleia Nacional de membros deste partido e do bloco de governo com os seus votos e os daquele bloco. Aquilo a que se está a assistir é a uma real erosão do chamado “cordão sanitário” em torno do RN. A dinâmica em curso parece ter sido bem resumida por um deputado do RN, Jean-Philippe Tanguy: “D’un côté, il faut se normaliser. D’un autre côté, il ne faut pas s’embourgeoiser non plus…” (Le Monde, 11.10, pág. 13). Interessante, esta frase, “il ne faut pas s’embourgeoiser non plus”, vinda de onde vem. O que apetece, pois, dizer à esquerda do senhor Mélenchon (e, já agora, ao senhor Olivier Faure), depois do processo a que assistimos (e sobre o qual tenho vindo aqui a escrever), é que quem tudo quer tudo perde, embora não se possa ainda prever as consequências, provavelmente politicamente fatais, dos seus actos. Mas creio que uma coisa é certa: o RN tem vindo progressivamente a ganhar influência e a normalizar-se perante a sociedade francesa. Acresce, agora, aos significativos resultados eleitorais obtidos nas europeias e na primeira e na segunda volta das legislativas, a partilha de cargos institucionais e de políticas que lhe são caras. A verdade é que o RN se tornou indispensável para a sobrevivência do governo e para a constituição dos poderes intermédios que governam o sistema institucional. E é muito provável que o processo de normalização da direita radical prossiga e que em 2027 possa mesmo vir a ganhar as eleições presidenciais, com a chamada frente republicana já completamente esfacelada. Não me parece que com esta situação Mélenchon tenha a vida facilitada para as presidenciais, mesmo numa segunda volta. Entretanto, aconteceu, como se sabe, mais uma nova vitória da direita radical na União Europeia: o Partido da Liberdade ganhou as eleições na Áustria, com 28,85%, dos sufrágios, depois de uma consistente participação de austríacos nas eleições, 77,68%. A normalização parece estar a impor-se na União, e agora também na França. Era esta a manchete do “Le Monde” de 11 de Outubro: “Assemblée: le cordon sanitaire autour do RN abîmé”. Este processo em França foi claramente favorecido pela posição maximalista da NFP, inspirada pelo subjectivismo político do senhor Mélenchon. Concordo, pois, com a posição do socialista e ex-ministro do PS, Vieira da Silva, no seu recente artigo no jornal Público, “Marcelo&Mélenchon” (14.10,2024, pág. 10), bem diferente da que defendeu a líder do GP/PS, Alexandra Leitão sobre o mesmo assunto, tendo eu próprio tido ocasião, em vários artigos aqui publicados, de fundamentar detalhadamente a minha crítica (veja sobretudo o artigo “A Democracia Roubada?”, de 11 de Setembro: https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/15819).

5.

Por cá, alguns processos que estão a ocorrer merecem considerações de natureza crítica. Em primeiro lugar, todo o processo de discussão do orçamento de Estado, em particular o carácter público das negociações entre o PSD e o PS. Não parece ser próprio de negociações sérias elas serem feitas na praça pública, por uma simples razão: transformam-se em peças teatrais para a plateia dos eleitores. Depois, não me parece muito normal que o orçamento seja construído em parceria entre os dois partidos da alternância (a não ser em situações excepcionais ou, coisa absurda, pouco ou nada distinguindo os dois partidos) porque, a ser assim, ele também deveria ser executado em parceria, tendo como consequência a formação de um bloco central (como já aconteceu), com efeitos governativos. O que já não parece ser muito lógico é que a executá-lo seja somente um dos partidos. Estranhas parece serem, pois, certas posições que, ao contrário do que já disse, no passado fim-de-semana, o próprio SG do PS, consideram que o Orçamento do PSD tem uma indelével “marca socialista” (Zorrinho) ou que ele deva ser aprovado por ambos os partidos do sistema para, assim, impedirem que o CHEGA se torne imprescindível na política nacional (Sousa Pinto), incorrendo, deste modo, numa clara petição de princípio – o PS e o PSD conduzirem-se politicamente tendo como objectivo essencial impedir a centralidade do CHEGA (uma espécie de bloco central contra este partido) significa, ipso facto, elevá-lo a pilar central da política nacional, exactamente o contrário do que pretendem. Ou seja, fazer entrar pela janela o que se quis afastar pela porta. Este equívoco de determinar a política nacional pelo imperativo de combater o CHEGA tem sido fonte de graves erros do PS. Mas há quem continue a lutar por eles. Ou, então, a posição radical e frontal de José António Vieira da Silva acerca do orçamento ou das próprias palavras de Pedro Nuno Santos, mais parecendo um anúncio de próximo combate à liderança do actual SG do que uma proposta de solução para a difícil situação em que se encontra, neste momento, o PS.  Terão sido cometidos erros até agora, mas esta posição de Vieira da Silva não ajuda o PS a encontrar o caminho certo para o seu essencial desempenho político.  Tudo isto, para não falar das famosas reuniões secretas do PM (o autor do “não é não”) com André Ventura, ainda por esclarecer cabalmente. A situação parece estar a tornar-se politicamente muito nebulosa e, por isso, uma clarificação eleitoral poderia vir a tornar-se útil para que tudo pudesse ficar mais claro e menos nebuloso.

6.

A recente questão levantada pelo SG do PS acerca do dever de reserva dos dirigentes e deputados comentadores do PS acerca do Orçamento, que está a provocar uma onda de declarações contra e a favor, merece clarificação. Sempre achei estranho que o espaço mediático de comentário político fosse ocupado por agentes concretos da política nacional que ocupam posições políticas institucionais quer no partido quer no Estado. A fórmula que sempre me pareceu boa era a do debate entre eles, não a do comentário, por uma razão: os ditos comentadores tenderão sempre a não procurar a objectividade devido às suas directas responsabilidades políticas. Ora o comentário, destinando-se a esclarecer a cidadania deve, na medida do possível, ser objectivo, imparcial e neutro (categorias dos códigos éticos), e não de parte. É para isso que servem os media, para ajudar o cidadão a tomar boas decisões através de boa informação e boa opinião (de factos, descodificadora e reflexiva). Se assim fosse, uma parte do problema ficaria resolvida. Por outro lado, é compreensível que quem ocupa posições de responsabilidade nos partidos (ou no Estado) deva temperar as suas convicções com o sentido de responsabilidade, remetendo as suas convicções para as instâncias próprias do partido e respeitando funcionalmente os que estão vocacionados para gerir o discurso público, logo a começar no mais alto dirigente, no caso do PS, no Secretário-Geral. Esta lógica, no meu entendimento, não se aplica a mais nenhum membro/militante partidário desde que não desempenhe altas funções de responsabilidade política, designadamente executivas. Utilizar o espaço público para condicionar a gestão política do próprio partido, quando tem direito a expressar a sua posição e a decidir nos principais órgãos de decisão nacionais, ou, em certos casos, para se promover e sobreviver pública e politicamente, não me parece ser politicamente muito saudável.

7.

Depois, a questão das eleições presidenciais. O líder do PS, Pedro Nuno Santos, a uma pergunta sobre eventuais candidatos da área socialista, respondeu referindo alguns nomes, incluído, agora, também o de António José Seguro, além dos que já circulavam. Não me parece que o devesse ter feito, não só porque se trata de uma candidatura pessoal, mas também para não interferir publicamente no processo de eventual candidatura de figuras afectas ao PS, abrindo o leque de possíveis candidatos em condições de obterem o seu apoio. Também aqui, a haver algum activismo do partido, ele deveria ocorrer de forma não pública. Publicamente, a resposta do Secretário-Geral deveria anotar que a candidatura não é de partido, mas pessoal, pelo que só perante o facto o PS se iria pronunciar. Apoiar um candidato, sim; apontar publicamente nomes de possíveis candidatos, seguramente não.

8.

No passado dia 12 tomou posse o novo Procurador Geral da República. Uma escolha de Luís Montenegro, acolhida imediatamente por Marcelo Rebelo de Sousa, mas, ao que se sabe, uma escolha que não foi precedida de consultas aos principais parceiros institucionais e, em primeiro lugar, ao Partido Socialista. Depois, uma escolha alinhada plenamente com as expectativas do Ministério Público, sendo certo que o PGR pode ser escolhido livremente pelo governo mesmo fora do poder judicial. Este alinhamento foi confirmado pelo novo PGR no seu discurso de posse ao dizer, nas barbas do poder político, que recusará alterações à natureza do Ministério Público, sem que tenha legitimidade para isso (falou, designadamente, se não erro, de independência, quando do que constitucionalmente se trata é de autonomia, estando a independência, nos termos constitucionais, reservada aos tribunais, ou seja, à magistratura judicial). Uma posição em tudo idêntica à que, se não erro, já tinha sido tomada publicamente pelo presidente do sindicato dos magistrados do Ministério Público, Paulo Lona. Duas opções, estas (não preceder a escolha do PGR de consultas aos parceiros institucionais e entregar a PGR ao MP), que dizem tudo sobre o que o PM pensa da justiça, em particular depois de o Ministério Público, incluída a própria Procuradora Geral, ter sido posto publicamente em causa por vários sectores da sociedade. É de recordar a demissão do Primeiro-Ministro, seguida de eleições, a seguir a um estranho comunicado da PGR, sem que até hoje esse processo tenha sido clarificado e concluído, e apesar de o autodemitido PM, António Costa, já ter sido declarado Presidente do Conselho Europeu, sem que o famoso inquérito que o levou à demissão tenha sido concluído ou sequer clarificado. Algo muito estranho, pelo menos tão estranho como o silêncio público e mediático que existe sobre este assunto.  Isto para não referir a tão criticada ida de meios militares à Madeira no âmbito de um processo judicial, a prisão excessiva de indiciados ou a escuta telefónica de um agente político durante quatro anos ou, ainda, o uso e abuso de prisões preventivas e de escutas telefónicas. Esta nomeação mais parece ser uma confirmação do governo de que, mesmo assim, está tudo bem, devendo, por isso, o Ministério Público ser premiado com a nomeação de um dos seus como PGR, apesar de jubilado e de fazer 70 anos em Janeiro (o que levanta sérias dúvidas sobre a possibilidade de se manter como PGR depois dessa data, se a lei não for alterada). E causa ainda estranheza que o principal partido da oposição, o PS, se tenha limitado a desejar bom trabalho ao indigitado, sem nada acrescentar.

9.

A política nacional (e internacional) não conhece os seus melhores dias, sendo, pois, pela sua importância e pelos seus efeitos sobre as nossas vidas, dever dos que a estudam e analisam reflectirem, livremente e de forma o mais possível objectiva e imparcial, sobre o que nela está a correr bem e sobre o que está a correr mal. É o que eu aqui tenho procurado fazer, evitando observar a realidade com as minhas próprias idiossincrasias pessoais ou interesses de parte. As idiossincrasias existem, claro, mas procuro que fiquem fora das minhas análises. Só assim se pode dar um contributo positivo a essa política que a todos condiciona, quer no presente quer no futuro.

JAS@10-2024