Os “degredados da Terra”, os “que vagam pelos esconsos da Terra” são os mesmos “condenados da terra” que, rebelados, encontram, frequentemente, no desterro, uma rota de sobrevivência e de libertação; mas que, na maioria das vezes, são os exilados em sua própria terra.

Os poetas, por sua vez, têm cumprido o papel de cantar a saga desses “condenados da terra”, assim como dos seus inevitáveis “degredados”. E o fazem desde tempos imemoriais.

Como digo nas palavras iniciais de meu romance AFP, “a história da humanidade é a história de suas infinitas guerras; os antigos aedos e cantadores foram, antes de tudo, guerreiros, combatentes; pelejaram sempre com duas armas: a lança e a palavra cantada.”

Recordo que, na ocasião, postei o poema no Facebook, acompanhado de uma pequena resenha. E eis que, neste momento, em que estamos a publicar uma série de poemas de poetas da Palestina, numa série denominada “Poemas da Resistência”, me vem à memória o poema de Narlan, que parece contaminado dos mesmos sentimentos dos poetas de Gaza, obrigados a enfrentar no dia-a-dia a opressão e o morticínio provocado pelas tropas invasoras de Israel. Se a realidade diária está repleta de sangue, carnificina, genocídio, como escrever poemas que não sejam de resistência?

Na tradição da poesia rebelde, revolucionária, contestadora e de combate, Narlan nos oferece esta preciosidade, fruto de seu espírito inquieto e sensível em relação à condição humana. Quem o lê, sente o mesmo ímpeto de luta e rebeldia, a mesma inspiração libertadora do autor, que nos conclama a todos a ir à praça, pois, citando Castro Alves, “a praça é do povo, como o céu é do condor”. Ao evocar os mitos gregos, com seus significados eternos, não pretende uma regressão às guerras de antanho, mas uma imersão nas de hoje; não apenas aquelas que acontecem neste momento, mas também aquelas que estão sendo gestadas pelos “demônios” de nosso tempo, e que estão a nos oprimir.

Embora o poeta sinta falta da “adaga” que acompanhava os antigos aedos, não escamoteia sua bravura, ao dar o grito de combate para que todos ocupem as praças e os degredados retornem à sua terra. Sua voz, embora “doce como uma harpa”, é “estridente como um canhão / no alto de uma escarpa”, e haverá de cumprir o seu papel de “desarmar o tempo / com o condão de seu gênio / e com seu dedo de hidrogênio”.

Belo e eloquente este poema de Narlan Matos, digno de nosso tempo e, mais particularmente, dos dias que estamos vivendo agora, neste momento cruel e quase desesperador.

 

OS DEGREDADOS DA TERRA

alta noite nos altos nos céus
o luar coberto de véus
de nuvens muito escuras
vê-se na vasta noite
quem são aquelas criaturas
que se lamentam e vagam
pelos esconsos da Terra?
que choram e soluçam
perdidas na escuridão
estes desgraçados mortos
feito espectros, quem são?
são os caídos filhos de Caim
arremessados neste desvão!
é a turba que purga no vale
da sombra no desterro sem fim
é quando de repente troando
nas alturas ouve-se uma voz
doce como uma harpa
estridente como um canhão
no alto de uma escarpa
mas que voz é esta
gritando na amplidão?
é a voz do poeta
clamando a multidão!
e o que pede o poeta
aos gritos, então?
que ergamos as cabeças
que levantemos do chão!
que cantemos a lira
na clave do coração!
que façamos uma pira
para iluminar a escuridão!
não sabe a populaça
que sua maior desgraça
é a falta de união?
o povo em uníssono
responde “não!”
e ao ouvir tal resposta
explode no universo um trovão!
e ouve o poeta que detrás
dele do nada gargalha Satanás
praguejando num silvo grita
“Jamais!”
e prossegue o poeta:
ah, o povo na praça
de mãos dadas à esperança
é a força da populaça!
a sanha dos tiranos
será varrida pelos anos!
e o povo se ergue na ágora
e em voz alta lhe indaga:
e o que faremos agora
pois não temos adaga?
e o poeta de novo brada:
acendei uma fogueira
que queime noite afora!
acendei a tocha e a pira
oh, preparai a aurora!
o amor é a arma do povo!
e o que mais clama o poeta
que a multidão de si desperta
para ouvir o seu clamor?
que o povo cante na Terra
o estribilho da quimera
oh, não deixeis a praça deserta
porque a praça é do povo
como o céu é do condor
e a multidão de si desperta
pergunta então ao poeta:
“E o que vence o terror?”
e responde-lhe o poeta
com seu brado de condor:
só vence o terror a legião do amor!
e o que mais clama o aedo?
há que vencer a legião do medo!
e se Deus pudesse nos falar
o que então ele nos diria?
a arma do povo é a alegria!
que diria ele a esta criança?
a arma do povo é a esperança!
e o que mais clama ele de pé?
a arma do povo é a fé!
o que mais clama o poeta
afiado feito uma seta?
liberdade igualdade fraternidade!
de repente ao seu lado
ao clarão da lua
surge Têmis, a deusa grega
da justiça, nua!
mas agora desperta
se arrepia a populaça
que antes jazia em sua
própria desgraça
que antes dormia
e agora prepara-se para
sem espada nem brasão
combater abnegada o revés
mas oh que nobre visão
vai ela agora, a multidão
na carruagem de seus pés!
pelas ruas pelos campos
nestas noites de prantos
onde a história é pálida
é fria é morta é esquálida
resta apenas à populaça
abraçar-se com bondade
na vasta praça da piedade
acender uma chama na noite
a isto chamamos revolução!
construir a vida o século
tendo na boca um ósculo
tendo nos lábios a canção
e prossegue o poeta:
guardai da morte
o fogo sagrado da vida!
ide, ide e pregai o sol
como uma verdade!
ide, ide e pregai a lira
como evangelho!
pregai a Natureza
como um espelho!
noite alta nos altos céus
o luar agora despido está nu
e agora brilha claro
no anfiteatro da noite azul.
e ao ouvir seu clamor ao vento
tal qual rasga o casco a espuma
a noite se converte em bruma!
é o poeta que desarma o tempo
com o condão de seu gênio
e com seu dedo de hidrogênio
cintilante no escuro
aponta para o futuro!
e que voz foi esta
gritando na amplidão?
foi a voz do poeta
despertando a multidão!
e o povo que antes era escravo
agora renasce bravo!
e o povo que antes era tristão
renasce impávido como um titão!
e indaga cheio de graça e gratidão:
quem foi este arcanjo
tocando a harpa dos anjos
que nos tocou a alma e o coração?
quem foi este arauto do Verbo
que acaba de nos dizer adeus?
foi o poeta que desceu dos altos céus
trazendo uma mensagem de Deus!

 

Na ocasião da postagem deste poema no Facebook, recebi com muito prazer o comentário do poeta Florisvaldo Matos, decano dos poetas baianos, que assim se pronunciou:

“Parabéns, amigo Paulo Martins, por esta luminosa pré-resenha, a partir deste vibrante poema, como a evocar a bravura de um Leônidas nas Termópilas, da multidão de franceses na Tomada da Bastilha, dos que lutaram com denodo e esperanças, na Guerra Civil espanhola, dos tantos que, combatendo em Pirajá, expulsaram os portugueses da terra brasileira, todos, aqui, ali, acolá, em tudo representando anseios e sonhos da humanidade, de esperança, fraternidade, independência e liberdade. E parabéns ao poeta Narlan Matos por esta elocução também vibrante, que evoca rastros de epopeias ou de quantos enchem a praça com gritos e coragem que atravessam os tempos, como nas barricadas de Paris (1850). Viva! Poesia, sempre!”


E o poeta acrescenta: “Lendo-o, fez-me lembrar um soneto do também baiano Jair Gramacho (1930-2003), constante de seu livro "Sonetos de Edênia e de Bizâncio", publicado pela então Imprensa Oficial da Bahia, em 1959, na forma de soneto shakespeareano.”

Pelo oportuno do tema e do poema, também transcrevo o soneto de Jair Grmacho, não para comparação, mas, como sugere FM, “por se inscrever no estatuto da coragem.”



UM TEMA DE C. P. CAVAFY

Jair Gramacho

Sim, glória para aqueles que na vida
Puseram sempre guarda nas Termópilas,
E, o dever sempre em mente, nas Termópilas,
Perseguem a coragem destemida,
O orgulho temperado de humildade;
Se ricos e abundantes, generosos;
Se pobres, igualmente generosos
Nas pobres cousas. Destes ninguém há de
Roubar a glória, a fama após a morte.
Mentiras dos seus lábios nunca saem,
Contudo, se apiedam dos que traem
E acumulam mais louros, pois a sorte

Pressentem e de Efialtes a traição,
E que, no fim, os persas passarão.

 

 

Por,

Paulo Martins – Editor Cultural