Cultura e gentrificação

 

Lisboa, dentre as capitais europeias, vivencia de forma aguda as tensões características dos espaços urbanos na atualidade, tais como a especulação imobiliária, a crise de moradias e a gentrificação.

Se o processo de transformação urbana ou “requalificação” de uma zona deteriorada é inicialmente visto como positivo, atraindo investimentos, novos negócios e moradores ou visitantes com maior poder aquisitivo, logo no momento seguinte ocorre a chamada “gentrificação”, quando se elevam o custo de vida e o valor dos imóveis e os residentes originais não conseguem pagar rendas supervalorizadas ou impostos majorados. Isso afeta também comércios tradicionais e atividades comunitárias, substituídos por atividades glamourizadas ou de turismo massificado.

É o que pode ser chamado de erosão cultural. A vida noturna e a cena artística da cidade se homogeneízam, prejudicando artistas emergentes, forçados a deixar seus ateliês e lugares de experimentação. Algumas zonas se tornam verdadeiros "parques temáticos" para turistas, com lojas de souvenirs e bares efémeros, esvaziando o típico comércio local. Com isso, as populações ficam sem suas referências e a cidade acaba perdendo seu maior atrativo ao se tornar “igual às outras”, um “não-lugar”, local de passagem e sem memórias afetivas.

Algumas iniciativas do poder público tentam minorar estes problemas. Um exemplo é o programa “Lojas com História”, da Câmara Municipal de Lisboa, que desde 2015 busca preservar e dinamizar o comércio tradicional e histórico da cidade como parte integrante da sua identidade cultural e económica. Nestes 10 anos, o programa já distinguiu mais de 200 estabelecimentos, entre eles o café "A Brasileira", no Chiado desde os primeiros anos do século XX, frequentado por Fernando Pessoa e outros fregueses ilustres. No entanto, a recente polêmica sobre a “Ginjinha sem Rival”, com ordem de despejo imediato que coloca em campos opostos nos tribunais, com tentativa de mediação pela Câmara Municipal, a família proprietária do estabelecimento, fundado em 1890, e os novos donos do imóvel, nos mostra que há muito ainda por fazer.

Podemos citar também o que está acontecendo com o NowHere, espaço cultural independente, localizado na emblemática rota do elétrico 28, em Lisboa, em “uma rua pacata e com vida de bairro”. Fundado em 2018 pela curadora Cristiana Tejo e pela artista Marilá Dardot, imigrantes brasileiras, às quais se juntaram a artista Luiza Baldan e o produtor cultural Rafael Moretti, o NowHere promove cursos, residências e exposições, apoiando a integração de artistas estrangeiros na cena lisboeta e se consolidando como espaço de memória viva e de arte experimental.

Recentemente, os gestores do espaço foram surpreendidos com um aumento de 3 vezes no valor da renda mensal do imóvel, o que inviabiliza seu funcionamento nos moldes cooperativos e independentes como foi estruturado. “Assistimos a uma mudança absurda no perfil da rua e das pessoas que a frequentam, assim como o que acontecia no resto da cidade”. Com a divulgação do anúncio do imóvel no principal site de venda e locação de Portugal, a questão se tornou pública e sensibilizou a comunidade de artistas brasileiros em Lisboa, que entende o espaço como “nosso pequeno canto de Utopia”.

Os gestores do NowHere estão em busca de apoio da Câmara Municipal e novos apoios para este momento, e a mobilização dos artistas será fator importante para a busca de soluções.

Uma cidade é um organismo vivo, rebelde a planejamentos e contenções, e a cultura é certamente o maior patrimônio de uma comunidade, como ouvimos no cantar de Caetano Veloso, feroz crítico “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”.