E escreveu Francisco Fortunato, 

Faz hoje 50 anos que iniciei o meu "salto" para a Bélgica. Fica aqui o meu testemunho que poderá ter alguns erros de pouca monta. É todo feito de memórias.

Na noite de 3 para 4, com o meu amigo Reis, operário na Lisnave, tal como eu, dei início ao salto para a democracia. Tinha sido preso na igreja do Rato, na vigília pela Paz, onde tinha ido por indicação do Manuel Arons de Carvalho, recentemente falecido, e aproveitei a confusão reinante na esquadra do Rato, na identificação dos detidos, para sair com o primeiro grupo de libertados. No entanto, no dia 2, pela manhã, a PIDE estava à minha procura na casa da minha mãe. Obviamente já lá não estava, mas deixaram uma notificação de comparência para me apresentar, no dia seguinte, no ministério do Interior. Notificação que a minha mãe me fez chegar às mãos e que seria de grande valia para obter rapidamente asilo político na Bélgica.

O Reis dizia-me que conhecia bem a fronteira no Caia, mas a noite e o frio (nesse tempo o inverno era mesmo frio) logo mostraram que tínhamos de a conhecer melhor para a passar. Demorou, por aí, umas 6 horas até chegarmos à central de camionagem de Badajoz, onde apanhámos um autocarro para Madrid.

A certa altura do percurso a "guardia civil" entrou no autocarro e foi olhando para os passageiros, nós fingimos dormitar e não nos pediram documentos. Chegados a Madrid apanhámos o comboio para Valência, porque tinha tios a viver em Cuart de Poblet.

Chegados a Cuart de Poblet, de táxi, os meus tios, sem eu saber, estavam a viver, temporariamente, em Vendrell, próximo de Tarragona, segundo um vizinho que nos deu a morada ou o telefone. Regressámos a Valência e apanhámos o comboio para Barcelona.

Lá saímos em Vendrell, manhã cedinho, e fomos à procura da casa dos meus tios. Aí chegados dormimos pela primeira vez em mais de 50 horas e também comemos. No dia seguinte, pelas 5h da manhã, o meu primo Fernando foi levar-nos, no seu carro, à fronteira com a França. Entretanto, pelas 7h da manhã, a "guardia civil" estava em casa dos meus tios para identificar os dois "forasteros" que tinham sido vistos a passear pelo "pueblo".

O meu primo deixou-nos próximos da fronteira de La Junquera e lá fomos atravessar, a pé, os Pirenéus, em janeiro, com frio, muito frio, alguma neve, e sem conhecermos patavina de nada. Demorámos umas 8 horas e quando começámos a descer vimos uma pequena povoação mas não tínhamos a certeza se já estávamos, ou não, em França. Era, salvo erro, Le Perthus, mas só o confirmámos quando passou um autocarro com a direcção de Perpignan. Fizemos sinal para parar e parou para surpresa nossa. Logo de seguida apanhámos um susto quando a "gendarmarie" faz parar o autocarro e entrou a fazer controlo de documentos a alguns não a todos. A sorte continuou connosco, nada nos pediram.

Chegados a Perpignan, já noite avançada, apanhámos o comboio para Paris onde chegámos ao romper do dia. Era um mundo novo, extasiados passeámos por Paris, nem o cansaço, nem as emoções nos venceram. Nunca tínhamos convivido com a democracia, a nossa vida tinha sido sempre no fascismo. Ficámos durante 2 dias, hospedados no hotel "Saint Pierre", na rue Ecole de Medicine.

No dia da chegado a Paris jantámos com Mário Soares na sua casa, o seu filho, João, tinha-me dado o contacto e, no dia seguinte, almoçámos com o historiador Joaquim Barradas de Carvalho, também exilado em França, por indicação do seu filho Manuel Arons. Após isto fiquei, durante alguns dias, em casa de um sobrinho de Mário Soares, Mário Barroso, o realizador de cinema,  por indicação do tio. Entretanto o meu amigo Reis regressava para sul e ficaria algum tempo a trabalhar clandestinamente nuns estaleiros em Pasaia, próximo de San Sebastian.

Fiz então uma tentativa, mal sucedida, de ir para Bruxelas, fui apanhado, no comboio, pela polícia de fronteira e recambiado para trás. Levava um passaporte manhoso válido apenas para o regresso a Portugal e o polícia, era casado com uma portuguesa, lia alguma coisa de português e percebeu facilmente a marosca. Na fronteira mais fácil sou assim  apanhado, mas fiquei a saber quando conduzido ao posto de polícia, em Maubeuge, que havia um mandado de captura na Interpol, a pedido das autoridades portuguesas, que a polícia francesa ignorou após breve interrogatório. Alguns dias mais tarde passaria então a fronteira para a Bélgica com um novo passaporte, menos manhoso, e nem sequer foi pedido.

Cheguei a Bruxelas, lá pelo dia 20, onde fui acolhido pelos meus afilhados de casamento, o Álvaro e a Ana, passado uma semana já estava a trabalhar como soldador, razoavelmente bem pago, e reconhecido oficialmente "refugiado político de origem portuguesa". Regressaria a Portugal no dia 07 de Maio de 1974!

Notas

Pelo meio a minha mãe foi duas vezes chamada à PIDE para dizer onde eu estava. Coitada ela nada sabia, só quando cheguei a Bruxelas o soube. Quando da minha passagem por Vendrell, a minha tia Arlete fez o que eu lhe tinha pedido para nunca fazer, telefonou mal eu saí, para tranquilizar a minha mãe, mas a chamada foi interceptada pela PIDE o que deu início aos problemas que viria a ter com a polícia política.

Isto de ser Operário e metido em política a polícia política não perdoava, era-se logo identificado como comunista e crime mais grave não havia...

Para o meu amigo e compadre Reis um grande abraço, sem o seu apoio tudo teria sido ainda mais difícil!.

Há algum tempo atrás, na EMEF/CP, encontrei alguns jovens operários a dizerem bem do Chega. Como é possível?