Para ilustrar esta desigualdade, pensemos nas profissões de varredor de rua ou de condutor profissional. Um condutor de transporte de passageiros, por exemplo, lida diariamente com a segurança de centenas de vidas, num ambiente onde os riscos de acidente são elevados. Dados recentes demonstram que, em 2023, Portugal registou quase 35.000 acidentes de viação, resultando em 468 mortos e 2.437 feridos graves. Estes números colocam o país entre os seis mais mortíferos da Europa em termos de sinistralidade rodoviária. Se estas estatísticas alarmantes não justificam uma organização profissional que defenda os interesses e a segurança dos condutores, então por que razão algumas profissões mais "tradicionais" gozam de um privilégio tão alto?
O mesmo se pode dizer dos varredores de rua, profissionais que trabalham em condições perigosas, expostos ao lixo urbano que inclui resíduos domésticos, industriais, hospitalares e até tecnológicos, como seringas e aparelhos eletrónicos. Estes trabalhadores enfrentam diariamente a ameaça de poluição do solo, das águas e do ar, bem como a proliferação de doenças como diarreias, parasitoses e outras infeções graves. É razoável que estes profissionais não tenham direito a uma ordem que os proteja e regule as suas condições de trabalho, tal como sucede com profissões mais "prestigiadas"? Como referem especialistas em gestão de resíduos, o varredor de rua "desempenha um papel crucial na remoção de resíduos" e na preservação da saúde pública.
Vejamos o exemplo da Ordem dos Médicos, que em várias ocasiões se opôs ferozmente à despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) e à legalização da morte medicamente assistida (eutanásia). A sua postura, baseada em preconceitos ideológico-religiosos, ignora o direito individual das pessoas a decidirem sobre o seu próprio corpo e vida, e coloca a opinião de uma minoria conservadora acima da vontade da maioria da população.
Como assinala o filósofo Michel Foucault, "o poder não é uma coisa, é uma relação". E, nas ordens profissionais, essa relação de poder tem sido exercida de forma a manter as profissões numa lógica de castas, onde apenas uma elite decide o que é certo ou errado, muitas vezes à revelia da sociedade e da cidadania. John Stuart Mill, defensor da liberdade individual, argumentava que "a única liberdade que merece o nome é a de procurar o nosso próprio bem à nossa maneira". No entanto, as ordens profissionais, ao imiscuírem-se em decisões de foro pessoal e ético, negam essa liberdade, impondo uma moral conservadora que já não reflete a pluralidade da nossa sociedade.
Por isso, defendemos que é chegado o momento de anular as ordens profissionais. Não se trata de eliminar a representação das profissões, mas sim de reformar profundamente este sistema, tornando-o mais inclusivo, democrático e alinhado com os valores de uma cidadania plena. Representar as profissões não deve significar perpetuar privilégios e preconceitos, mas sim garantir que cada trabalhador, independentemente da sua ocupação, tenha uma voz ativa e justa na sociedade.
Em vez de "chefinhos" que se arrogam no direito de decidir em nome de todos, precisamos de estruturas que realmente sirvam o interesse público.
Porque, como bem colocou George Orwell, "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros". É precisamente esta desigualdade que as ordens profissionais têm perpetuado, e está na hora de pôr um fim a isso.
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