Quem acredita que Biden governa?

É um faz de conta e não tem só a ver com a Para fazer de conta que governam, os governos e os partidos oposicionistas criam um clima de permanente tensão, uma espécie de todos contra todos para esconder que, seja quem for que governe, mantém, no essencial, o status quo, o anunciado fim da História.idade.

A arte para alcançar tal desiderato foi gradualmente transferir o poder político, para o poder económico. Para tanto foi necessário operar importantes transformações quer na superestrutura, quer na infraestrutura.

No chamado Ocidente, o capitalismo da produção de mercadorias foi dando lugar a um capitalismo em que as finanças dominam. Nos EUA e na Europa, a vaga neoliberal mudou muito o fundo da economia. Procedeu-se à substituição das grandes fábricas pelas indústrias do entretenimento (turismo, tecnologias, futebol, desporto em geral, saúde) e também no investimento no complexo militar-industrial

Paralelamente com a implosão da URSS, o capitalismo sentiu-se livre de constrangimentos políticos e desencadeou uma nova política de ataques aos direitos conquistados desde a década de 50 do século XX. Foi assumido pelos diversos poderes que não se podia viver como se tinha vivido. Era preciso “castigar” os que acreditavam que os filhos poderiam viver melhor que os progenitores.

Na U.E. começou o desmantelamento do Estado social com o avanço do federalismo e a implantação da moeda única. A financeirização tomou conta do coração das instituições da U.E. O que a fazia diferente não resistiu e tornou-a uma organização orientada pelo neoliberalismo mais duro que puro.

No plano da superestrutura venceram as ideias de que só é pobre quem quer. A pobreza é da exclusiva responsabilidade dos pobres.  A sociedade é uma invenção, o que existe são indivíduos que têm de competir entre si. Ganha o melhor. Chamam a isto meritocracia.

A derrota do comunismo soviético, a mudança de campo da social-democracia (a ponto da Internacional Socialista se encontrar em estado de hibernação) deixou o mundo sem referências que o nortearam durante quase um século.

Este quadro das chamadas democracias liberais orientadas por um único Deus – o Santo Mercado – permite que dentro dele se esbocem e se travem disputas onde ninguém está de acordo com ninguém, salvo no que já referimos como sendo o quadro global dominado pelo capital financeiro, considerado intocável, dado que é o suporte do mercado. O novo Príncipe, alcunharia Maquiavel.

A propósito de medidas que os governantes tomam, em geral, estabelece-se uma verdadeira guerra que não leva a lado nenhum, salvo à erosão do partido no poder que acabará por ser substituído por outro mais ou menos parecido que enfrentará a mesma procissão de oposições e de novo à reentrada no governo do derrotado anteriormente. Todos os anos, seja com o PS, seja com o PSD, o SNS se revela incapaz de servir, devido à aposta na privatização dos serviços de saúde, altamente rentáveis. Só a maior desfaçatez pode justificar que uma grávida percorra mais de cem quilómetros e, às vezes muito mais, para dar à luz.

Há quem chame a estas virtudes liberais o arco da governação, isto é, o campo que vai dos socialistas às várias direitas mais ao centro ou mais à direita da direita um pouco por toda a Europa, já sem linhas vermelhas quanto à extrema-direita, mas vermelhíssimas contra a esquerda quando ganha eleições, como em França.

Naturalmente que para parecer que existe uma verdadeira escolha capaz de na verdade fazer a diferença, o sistema ancorou na velha ideia de Thomas Hobbes de todos se posicionarem contra todos, substituindo o Príncipe ditador pela omnipresente ditadura democrática liberal dos mercados que nunca foi a votos.

A diferença do ensaio “Leviatan” de Hobbes, para a atualidade, reside no facto dos povos poderem votar nos partidos que aceitem que estas regras são intocáveis – sai um e entra outro ao velho estilo do rotativismo liberal do início do século passado, ficando sempre tudo na mesma.

Os que não aceitam estas regras são excomungados ideologicamente. Se, um dia, quiserem vencer têm de ser capazes de forjar alternativas baseadas em amplas alianças para num primeiro momento estancar a hemorragia neoliberal e depois avançar para transformações com base na unidade democrática, cultural, ecológica e popular. Só a verdadeira diferença pode ressuscitar a esperança e a democracia participativa. Até lá vira o disco, toca o mesmo e cresça a extrema-direita.

Domingos Lopes

https://www.publico.pt/2024/09/11/opiniao/opiniao/ditadura-democratica-democracias-liberais-2103712