“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.”
Em contagem regressiva para o fim do ano, inicio o presente texto citando o trecho da canção “Sujeito de Sorte”, de Belchior. Afinal, quem conseguiu chegar até aqui “são e salvo e forte”, pode se considerar um sujeito de sorte.
Contudo, chegarmos até aqui não significa chegarmos ilesos. Creio que todos nós, atravessados pelas intempéries deste ano devastador, “sangramos demais e choramos pra cachorro” em muitos momentos de 2020. Mais do que isso, morremos um pouco junto com cada uma das 1.807. 638 vítimas fatais de um inimigo invisível com o qual lutamos juntos no mesmo front.
Nossa capacidade de identificação nos coloca em posição de enxergar em cada despedida de um desconhecido o rosto de um daqueles que amamos: estamos todos submetidos à fragilidade da vida. Estamos todos condicionados à inevitabilidade da morte. E é essa condição de igualdade que nos conecta, como membros de um só corpo chamado humanidade – a perda de um é a perda de nós todos.
Em 2020 essa morte simbólica que cruzou a todos, inevitavelmente, não veio atrelada somente às perdas de vidas, mas às inúmeras outras perdas sofridas em meio à pandemia: perdas materiais; perda de estabilidade emocional e financeira; perda de segurança; perda da liberdade de ir e vir; perda do que se tinha como referência da vida.
E o que esperar de 2021, que bate à porta nos trazendo um ar de alívio, como se a virada do ano significasse a cura de todo mal?
Esperamos VIDA! Que nossos olhos, fatigados de ver injustiças, indiferenças, descasos e sofrimentos, consigam olhar para trás e enxergar, para além de toda dor, as mãos estendidas em solidariedade no isolamento; os esforços da comunidade científica em busca da cura; a entrega imprescindível dos incansáveis profissionais de saúde; o empenho social pelo cumprimento dos protocolos que garantiram a manutenção do bem estar comum; enfim, as flores que brotaram na aridez de um ano desértico. E que, assim, nossa esperança vença à morte cantando Belchior: “se ano passado eu morri, esse ano eu não morro.”
Por: Carolina Rodrigues