Sétimo livro de J.A.S. Lopito Feijóo K., cujos títulos integram a palavra Doutrina – o primeiro que publicou, em 1987, chamava-se mesmo Doutrina, a que se seguiram Lex & Cal Doutrina(2012), Andarilho e Doutrinário (2013), ReuniVersos Doutrinários (2015), Pacatos & Doutrinários Recados (2016), Imprescindível Doutrina Contra (2017) – é natural que se diga que esta é uma palavra fundamental e mesmo chave no seu projeto literário que também é, obviamente, um projeto de intervenção cívica.
Porque este Doutrinárias Lâminas Doutrinárias é o desenvolvimento natural e lógico desse mesmo projeto, para apresentar aqui e agora este seu novo livro, tive de optar também natural e logicamente por decalcar o que tinha dito do seu poemário anterior, Imprescindível Doutrina Contra (2017), que denunciou o regime anterior com rara acutilância, anunciando corajosamente uma ruturacom o poder, através de variações sobre as suas preocupações recorrentes, que eram então o estado da sua nação, cujo levantamento fez estridentemente utilizando eficazmente provérbios angolanos, que compõem parte importante da literatura oral de Angola – e têm natureza pedagógica e filosófica. Um provérbio carrega sempre dois sentidos – literal e conotativo. Traz também uma lição, a síntese subjacente ao significado das palavras e de que se parte para a extracção da ideia, do valor, do pensamento, enfim o ensinamento moral ou filosófico.
A própria estrutura desta obra com 60 Sabedorias– Umbundu, claro, numeradas em romano – é bem clara, dizendo ao que vem: «Oh! Morreu o tirano ongandu yafa? Aquele que dava ordens para nos maltratar, que nunca soube nem reconheceu quando é que era escarnecido, kakulihile, epembe?»
Por isso, ele avisa: «Aos rafeiros e retrancados embusteiros,/ em serviço, resta solidária a confissão/ confinada no penúltimo porto de abrigo.», e declara sem rebuço: «Não posso ser mais um embalado/ não quero ser menos um avisado/ não espero ser mais um enlatado/ não vale ver o rei empoleirado.»
Aliás, pautando sempre por uma objetividade e clareza de realçar, ele próprio há dois anos num depoimento que deu para o site Portal de Angola, declara perentoriamente: «Toda a poesia que é feita com consciência do fazer e do dever fazer é doutrinária. Quando publicamos um texto literário, ele desprende-se do autor, passa a ser de quem o lê e de quem com ele se identifica. Começa a gerar-se um fluído de consciência, uma espécie de doutrina, que orienta o leitor e que o obriga a ler e reler o texto de forma a que nele possa encontrar novos caminhos e orientação».
E já em 2014, em entrevista concedida ao jornalista Isaquiel Cori, publicada no quinzenário luandense Cultura, ele tinha sido taxativo: «Eu quero fazer uma literatura única e com sequência. A marca Lopito Feijó distingue-se pela característica doutrinária, no sentido de estarmos a fazer doutrina poética. Queremos que o nosso pensamento poético fique e marque filosoficamente todo um processo literário e a história da literatura angolana. Ao leitor, depois de ler essa poesia, vão-lhe sobrar alguns princípios éticos e estéticos que lhe permitirão encaminhar a sua vida de forma mais esplendorosa, florescente e fluorescente».
Conjunto de princípios que servem de base a um sistema, o vocábulo Doutrina, que deriva do latim doctrina, está sempre relacionado com disciplina, com qualquer coisa que seja objeto de ensino, e pode ser propagada de várias maneiras, saber, ensino, norma, enfim, forma de raciocinar.
Por isso, não foi por acaso, que, recentemente, definiu o livro como uma ferramenta de extrema importância para o desenvolvimento de qualquer sociedade, pelo facto de contribuir para o crescimento do intelecto do cidadão e representa um elemento indissociável na formação integral.
Nunca indiferente, muitas vezes panfletário, ele sabe avisar: «À beira do precipício, com sua imaginação/ neste imenso matagal nosso povo/ confundido, ferido, esquecido e perdido/ transcendendo vontades e diariamente renascendo/ sabe seguir seguro. Só lhe resta a ressurreição!»
Jogando com as palavras e as rimas em várias figuras de estilo que tanto têm a ver com metonímias como com anáforas, que vai usando de maneira tão espontânea como aparentemente natural, Lopito Feijóo socorre-se de todo um manancial de retórica numa escrita desenvolta, fazendo aparecer inúmeras «trouvailles» como resultado lógico das lucubrações de um poeta de causas, mas que não esquece que, mesmo assim, a poesia é um objeto que precisa de ser lapidado, e que enriquece entrosando sabiamente o seu Kimbundu natal com o português emprestado indelevelmente.
Natural e recorrentemente filosofante, na medida do seu plano doutrinário de grande ambição«deitando mão a diversíssimos formatos arquitextuais (soneto, ode, haiku, dístico, epigrama, prosopoema)», como acentuou em devido tempo o professor Pires Laranjeira, LopitoFeijóo «traz à cena do discurso um descomplexado ensejo de confrontar códigos e linguagens, por um processo requintado de (re)construção significante que é herdeiro direto e dileto não só do modernismo e tradição vanguardista, mas (…) do romantismo rebelde, apaixonado, revolucionário.»
Senhor de uma escrita cujas origens se podem reconhecer num seu avô viciado em petições e que nunca deixou de fazer requerimentos para fazer valer a sua razão, por mais que as autoridades não lhe ligassem nada, não será difícil perceber a influência da poesia do David Mestre, que Lopito reconhece antes de tudo, não só nos aspetos formais mas na pose quotidiana emergindo as atitudes como fundamentais para a sua afirmação literária, podemos encontrar resquícios de João Maria Vilanova no seu esforçode síntese que perpassa por todo o seu poemário. Mas não devemos esquecer, além do poeta português Alexandre O’Neill, no seu sarcasmo muito peculiar, que alia cinismo a uma humanização muito clara, um seu conhecimento recente, o poeta concretista português José-Alberto Marques, que aliás já o reconheceu em pleno Festival Correntes de Escrita, da Póvoa de Varzim, Portugal, considerando Lopito Feijóocomo um dos grandes poetas experimentais, a par dos melhores do Brasil e Portugal. E é bom lembrar que a exuberância rimática tem muito a ver com um poeta português chamado José Carlos Ary dos Santos, pela sua espontaneidade de verbo fácil e ao mesmo tempo certeiro e arrojado.
Como disse o jovem escritor e ensaísta moçambicano, Japone Arijuane, Lopito Feijóo «É sem escrúpulos um poeta que poetiza as vivas e duras vivências africanas, com muita transpiração, que se diga: felizmente consegue transmitir veementemente as imagens desta angolanidade usando a poesia como a fotografia fiel destas convivências.»
Como anunciei quando do envio dos convites, o Lopito Feijóo é, provavelmente, o maior poeta angolano vivo. De vários modos esta minha afirmação vai contra tudo o que eu costumo fazer. Não sou de rótulos e muito menos de adjectivos absolutos. E respeito muito os atuais nomes da poesia angolana, que os tem de muita qualidade. Mas sobre o Lopito, não tenho dúvidas e repito: o Lopito Feijóo é maior poeta vivo de Angola. Porque é estridente. Porque tem muita garra e faz da poesia o seu quotidiano. Porque se está marimbando para muita coisa e o poder em especial. Porque pensa a partir da poesia e com ela apenas. Recorrente e simplesmente. É realmente um poeta inteiro, total, por um lado, com uma grande fluência espontânea, na tradição dos chamados poetas repentistas portugueses, que teve em Bocage o principal epígono, por outro lado, com o encanto dos velhos griots da tradição africana, responsáveis pela transmissão da tradição e cultura.
Portanto, um poeta para todas as estações, isto é, um poeta tão completo como universal, que vai evoluindo no seu próprio percurso.
Só um poeta assim é que poderia bradar também assim, subvertendo ousadamente gramáticas e semiologias: «Amar liberta e na pele sublima/ o alvorado orvalho da tela carente./ Altas e baixas tensões o amor regula, infernal/ bombeando sangue, deslumbrando almas.»
Rodrigues Vaz
Texto lido na Casa de Angola, ao 21 de setembro de 2018, na apresentação do livro Doutrinárias Lâminas Doutrinárias, de Lopito Feijóo
More Stories
A GNR e o tratamento de Bovinos
Bovinos e Touradas em Portugal: Denúncias e Pedidos Urgentes
Há mesmo muitos, muitos mais, contra a guerra, eslava ou outra!